Raphael Silva Rodrigues
Advogado em Belo Horizonte.
Professor dos
Cursos de Pós-Graduação em Direito Processual e em Direito do Trabalho pelo
Instituto de Educação Continuada (IEC) da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais (PUC-Minas), de Gestão de Tributos pelo Centro Universitário
Newton Paiva, e de Direito e Processo Previdenciário pelo Centro Universitário
de Belo Horizonte - Unibh.
1. CONTEXTO INICIAL
É muito comum verificarmos situações em que mesmo
possuindo a prerrogativa necessária para a obtenção do benefício de isenção do
Imposto de Renda (pensionista e portador de doença grave e incurável), alguns
cidadãos vêm sendo obrigados a recolher o valor do imposto incidente sobre os
seus proventos ou valores recebidos a título de pensão, já que a patologia da
qual são acometidos não se encontra relacionada dentre aquelas previstas no
artigo 6º, XIV, da Lei n.º 7.713/1988[1].
Apenas para
contextualizar, num caso hipotético, podemos ter a situação em que a partir da
análise do laudo pericial médico de um cidadão interessado em obter a isenção
de Imposto de Renda sobre os seus proventos de aposentadoria ou valores
recebidos a título de pensão, haja vista que possui uma doença grave e
irreversível, é verificado que, embora padeça de enfermidade grave, não seria
esta concessiva da isenção prevista na Lei n.º 7.713/88, posto não constar do
rol contido no inciso XIV do seu artigo 6º. Entretanto, ao mesmo tempo, tal
laudo deixa claro que a doença que o acomete é muito grave, deletéria e
sacrificante tanto quanto as que estão elencadas na mencionada legislação.
No entanto,
conforme se demonstrará a seguir, tal interpretação não pode ser tolerada pelo
Poder Judiciário, tendo em vista seu nítido caráter excludente e totalmente
contrário aos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, insculpidos
na Constituição Federal de 1988, bem como nos artigos 6º e 196, também da Carta
Magna.
2. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS DIREITOS
FUNDAMENTAIS
A
Constituição Federal de 1988 erigiu como pilar supremo de sua fundamentação, a
dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF/88), de modo que o referido
princípio insere-se dentro da categoria de direitos imanentes ao ser humano, ou
seja, mereceriam tutela estatal independentemente de ser agasalhados pela ordem
jurídica, porquanto revelam parcela indeclinável da natureza humana.
Ou seja, a dignidade da pessoa humana é um valor
constitucional supremo, de modo que se revela como núcleo em torno do qual
gravitam os direitos fundamentais.
A dignidade é um atributo de todo ser humano, sendo que a
própria Constituição Federal impõe-se um dever de proteção e promoção desta
dignidade, não só destinado ao Poder Público, mas a todos os cidadãos.
Como
desdobramento de seus fundamentos e sensível ao fato de que a população
brasileira necessita de ações positivas da sociedade e do Estado para o pleno
exercício dos direitos fundamentais, a Constituição Federal de 1988 apresenta
diversos dispositivos relativos à preservação daqueles direitos inerentes a
todo ser humano.
Luís
Roberto Barroso ensina:
Na esteira do Estado intervencionista, surgido do
primeiro pós-guerra, incorporam-se à parte dogmática das Constituições
modernas, ao lado dos direitos políticos e individuais, regras destinadas a
conformar a ordem econômica e social a determinados postulados da justiça
social e realização espiritual, levando em conta o indivíduo em sua dimensão
comunitária, para protegê-lo das desigualdades econômicas e elevar-lhe as
condições de vida em sentido mais amplo. (in “O Direito Constitucional e a
Efetividade de suas Normas”; 3ª ed.; Rio de Janeiro: Renovar. 1996; p. 114).
Observa-se
que a dignidade da pessoa humana, com seus consectários lógicos, como o piso
mínimo vital deve ser garantida a todos os seus indivíduos, o que abarca a
proteção à liberdade, à cidadania, ao bem estar social, à saúde, à propriedade,
à segurança, enfim, a uma pluralidade de interesses cuja garantia está atrelada
a preservação da dignidade da pessoa humana.
A
dignidade da pessoa humana revela que o Poder Público tem uma obrigação natural
positiva e negativa, sendo que deve assegurar o piso mínimo vital a todos os
cidadãos e conter práticas que possam afastá-lo da plenitude de acesso a ele
ante a premência de sua estrutura para a vida em sociedade e para a preservação
de todo o ordenamento jurídico e da força do direito como elemento de
regramento ético-social comportamental.
[...] o direito público subjetivo à saúde
representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das
pessoas pela própria Constituição da República.
Sendo assim, considerando o princípio
da dignidade da pessoa humana, há que se concluir que, possuindo moléstia grave
e irreversível que justifique a exclusão de seus proventos da incidência do
Imposto de Renda, tal cidadão jamais poderá deixar de auferir os benefícios da
isenção fiscal quando tenha comprovada necessidade de enfrentar gastos
extraordinários para coibir o retorno de tal enfermidade.
3.
ISENÇÃO DO IMPOSTO DE RENDA: PORTADORES DE DOENÇAS GRAVES
Como visto, não tem
sido incomum depararmos com a situação em que uma pessoa tem sido diagnosticada
portadora de doença grave e incurável, reconhecida em
laudo pericial formalizado por profissional médico.
Exatamente nessa situação, as pessoas que
nela se encontram buscam minimizar os custos para enfrentar o dispendioso
tratamento médico. A princípio, pensamos que assiste a esse tipo de cidadão o
direito à isenção do Imposto de Renda sobre os seus proventos de aposentadoria
ou valores recebidos a título de pensão, dos quais são descontados mensalmente
na sua folha de pagamentos.
Dispõe o artigo 6º, XIV e XXI, da Lei n.º
7.713/88, in verbis:
Art. 6º Ficam
isentos do imposto de renda os seguintes rendimentos percebidos por pessoas
físicas:
[...]
XIV – os proventos
de aposentadoria ou reforma motivada por acidente em serviço e os percebidos
pelos portadores de moléstia profissional, tuberculose ativa, alienação mental,
esclerose múltipla, neoplasia maligna, cegueira, hanseníase, paralisia
irreversível e incapacitante, cardiopatia grave, doença de Parkinson,
espondiloartrose anquilosante, nefropatia grave, hepatopatia grave, estados
avançados da doença de Paget (osteíte deformante), contaminação por radiação,
síndrome da imunodeficiência adquirida, com base em conclusão da medicina
especializada, mesmo que a doença tenha sido contraída depois da aposentadoria
ou reforma;
[...]
XXI - os valores
recebidos a título de pensão quando o beneficiário desse rendimento for
portador das doenças relacionadas no inciso XIV deste artigo, exceto as
decorrentes de moléstia profissional, com base em conclusão da medicina
especializada, mesmo que a doença tenha sido contraída após a concessão da
pensão.
O referido dispositivo legal se refere a
enunciado normativo com conteúdo material tributário, tutelando a saúde da
pessoa aposentada ou pensionista que, pelo acometimento de moléstia grave,
encontram-se carecendo de tratamento especializado, tendo a isenção legislada,
o escopo de amparo indireto do cidadão pelo ente estatal, de forma a
possibilitar a pessoa, por meio de isenção no Imposto de Renda, melhores
condições financeiras para o custeio do tratamento e preservação da sua saúde.
Ao regulamentar a legislação
em questão, o Poder Executivo, por meio do Decreto n.º 3.000/99 (RIR), da mesma
forma, limitou a concessão da isenção do Imposto de Renda. Veja-se:
[...]
XXXI - os
valores recebidos a título de pensão, quando o beneficiário desse rendimento
for portador de doença relacionada no inciso XXXIII deste artigo, exceto a
decorrente de moléstia profissional, com base em conclusão da medicina
especializada, mesmo que a doença tenha sido contraída após a concessão da
pensão;
[...]
XXXIII - os
proventos de aposentadoria ou reforma, desde que motivadas por acidente em
serviço e os percebidos pelos portadores de moléstia profissional, tuberculose
ativa, alienação mental, esclerose múltipla, neoplasia maligna, cegueira,
hanseníase, paralisia irreversível e incapacitante, cardiopatia grave, doença
de Parkinson, espondiloartrose anquilosante, nefropatia grave, estados
avançados de doença de Paget (osteíte deformante), contaminação por radiação,
síndrome de imunodeficiência adquirida, e fibrose cística (mucoviscidose), com
base em conclusão da medicina especializada, mesmo que a doença tenha sido
contraída depois da aposentadoria ou reforma;
Verifica-se que o legislador, ao
estabelecer a isenção tributária erigida pelo artigo 6º, XIV e XXI, da Lei n.º
7.713/88, tutela, sobretudo, a saúde do cidadão brasileiro que se encontra com
idade avançada, que aposentado, já se encontra desgastado pelos inúmeros anos
de trabalho e por esta razão com a saúde mais fragilizada, encontrando-se mais
susceptível as nefastas consequências de uma moléstia grave.
Com efeito, a
Constituição Federal de 1988 trata da dignidade da pessoa humana e da cidadania
como fundamentos da República Federativa do Brasil (incisos II e III do artigo
1º), e, como objetivos fundamentais, a construção de uma sociedade livre, justa
e solidária, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (incisos I e IV do artigo
2º).
E como
desdobramento de seus objetivos e fundamentos e sensível ao fato de que as
pessoas com doenças graves necessitam de ações positivas da sociedade e do
Estado para o pleno exercício dos direitos fundamentais, a Constituição Federal
apresenta diversos dispositivos relativos à proteção social daqueles que
necessitam de amparo na área da saúde.
Por exemplo, o direito a saúde do cidadão é
norma constitucional esculpida no artigo 6º, tendo seu conteúdo normativo
garantidor complementado pelo artigo 196 da CF/88, que determina o dever
estatal de fomento da saúde por meio de ações positivas do Estado, de forma que
os aludidos dispositivos, quando interpretados em confluência a norma
tributária regulamentadora, resplandecem a necessidade do acautelamento do caso
em concreto, por meio do reconhecimento do direito da demandante, senão
veja-se:
Art. 6º. São
direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o
lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Art. 196. A saúde é
direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao
acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção
e recuperação.
Ou seja, a finalidade
da lei, no caso em concreto, é de oportunizar ao portador da moléstia grave
melhores condições de tratamento de sua doença, permitindo pelo alívio dos
encargos fiscais por ele até então suportados, a realização de acompanhamento
médico periódico, de forma que os fatores de risco que estigmatizam o paciente
de doença grave possam ser atenuados.
Constata-se,
portanto, a existência de um vetor constitucional de promoção de ações visando
à tutela das pessoas com problemas de saúde, considerando as dificuldades que
estas enfrentam na vida em sociedade, tais como o preconceito, a discriminação,
as barreiras físicas e de comunicação, e o acesso ao mercado de trabalho.
A concessão de
isenção disciplinada na Lei n.º 7.713/88
insere-se no contexto de concretização do vetor constitucional de proteção das
pessoas com doenças graves. Os objetivos de se conceder a isenção do Imposto de
Renda são a superação das desigualdades, a inclusão social das pessoas com
doenças e o exercício dos direitos fundamentais.
Fixadas essas
premissas, fácil perceber que é equivocada e discriminatória a interpretação da
Receita Federal do Brasil de excluir o benefício fiscal das pessoas que têm
doenças tão graves quanto àquelas previstas na legislação de regência.
A Constituição Federal
estabelece como direito fundamental o direito da igualdade (artigo 5º, caput). No campo tributário, tem-se como
corolário o princípio da isonomia tributária, previsto no artigo 150, II, da
CF/88:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias
asseguradas ao contribuinte é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal
e aos Municípios:
[...]
II – instituir tratamento desigual entre
contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer
distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida,
independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos.
Como se denota, a garantia de tratamento uniforme
pela entidade tributante, de quantos se encontrem em condições iguais está na
Carta Magna e não é dado ao legislador ou aplicador da Lei criar exceções ao
tratamento igualitário, sob pena de criar odiosa discriminação, ofendendo
frontalmente a Constituição.
Ora, a
realização da justiça não pode, sempre, aguardar a atuação do legislador,
cabendo ao magistrado, em casos excepcionais, afastar as regras para
implementar a justiça, com base nos princípios informadores do ordenamento
jurídico.
A concessão da medida que ora de pleiteia não
infringe o princípio da legalidade tributária (artigos 5º, II, e 150, I, da
CF/88), uma vez que o mesmo constitui garantia do contribuinte, e não um óbice
à realização da justiça material, mediante a aplicação do princípio da isonomia
tributária.
Sobre esta
vinculação, cite-se o magistério de Paulo de Barros[3]:
O desprestígio da chamada
interpretação literal, como critério isolado da exegese, é algo que dispensa
meditações mais sérias, bastando arguir que, prevalecendo como método
interpretativo do direito, seríamos forçados a admitir que os meramente
alfabetizados, que sabe com o auxílio de um dicionário de tecnologia jurídica,
estariam credenciados a elaborar as substâncias das ordens legisladas,
edificando as proporções do significado da lei. [...] O jurista, que nada mais
é que um lógico, o semântico e o pragmático da linguagem do direito, há de
debruçar-se sobre os textos, quantas vezes obscuros, contraditórios, penetrados
de erros e imperfeições terminológicas, para construir a essência dos
institutos, surpreendendo, com nitidez, a função da regra, no implexo do quadro
normativo. E, à luz dos princípios capitais, que no campo tributário se situa
ao nível da Constituição, passa a receber a plenitude do comando expedido pelo
legislador, livre de seus defeitos e apto a produzir as consequências que lhe
são peculiares.
Destaque-se, ainda, que as periódicas inclusões de
novas doenças na relação prevista no artigo 6º, XIV, da Lei n.º
7.713/88, a fim de que os portadores respectivos passem a gozar da isenção nele
outorgada, só reforça a conclusão trazida nesse artigo, porquanto deixa
evidente a deficiência do legislador na capacidade de prever, de antemão, todas
as patologias cujos portadores merecem usufruir desta isenção.
Portanto,
conclui-se que o indeferimento
do benefício aos
portadores de doenças similares ou até mais graves daquelas previstas na
legislação de regência afronta a ratio legis do benefício fiscal.
4. DA JURISPRUDÊNCIA
Os
argumentos ora sustentados acerca do direito à isenção de Imposto de Renda
mesmo àqueles que, a despeito de possuírem doença grave e incurável, mas que
não se encontra relacionada dentre as doenças arroladas na Lei n.º 7.713/88, já foram reconhecidos pelo Superior Tribunal de
Justiça, conforme demonstra o aresto a seguir colacionado e
que resultou de julgamento de ação envolvendo matéria similar ao tema ora
analisado:
Tributário.
Administrativo. Aposentadoria Voluntária. Moléstia Grave. Retificação do Ato.
Isenção do Imposto de Renda. CTN, art. 111 – Lei 4.506/64 (art. 17, III).
Decreto 85.450/80 (art. 22, IX e XI). Decreto 1.041/94 (art. 40, inc. XXVII).
1.
Comprovada a moléstia grave, mesmo que a doença seja diagnosticada após o ato
de aposentadoria voluntária, os proventos estão sob a aura da isenção do
Imposto de Renda (efeito ex tunc). Deveras, o objetivo da isenção decorre da
necessidade de não sacrificar demasiadamente os proventos com os dispendiosos
gastos com o tratamento da enfermidade grave. [...]. (REsp n.º 141.509/RS, Rel.
Min. Luiz Pereira, 1ª Turma, DJ 17.12.1999)
A mesma linha de raciocínio foi
utilizada em outros precedentes dos Tribunais Regionais Federais da 1ª e 4ª
Regiões, conforme demonstram os seguintes julgados:
TRF
da 1ª Região
IMPOSTO DE RENDA DA PESSOA FÍSICA. ISENÇÃO PREVISTA NO
ARTIGO 6º, INCISO XIV, DA LEI 7.713/1988. PESSOA PORTADORA DE DISTONIA
CERVICAL. DOENÇA GRAVE E INCURÁVEL, NÃO ESPECIFICADA EM LEI. CABIMENTO.
APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA ISONOMIA TRIBUTÁRIA, EM DETRIMENTO DA REGRA DA
INTERPRETAÇÃO LITERAL, DA LEI QUE OUTORGA ISENÇÃO, E DO ENTENDIMENTO DE QUE A
RELAÇÃO LEGAL É EXAUSTIVA. 1. Conclusão da perícia oficial, ratificada pelo
assistente técnico da Fazenda Nacional, no sentido de que a autora padece de
distonia cervical, doença grave e incurável, porém não especificada na Lei
7.713/1988 (Artigo 6º, inciso XIV). 2. No confronto entre princípios e regras,
deve ser dada prevalência aos primeiros. Precedentes desta Corte. 3. Aplicação
do princípio da isonomia tributária, que veda às entidades políticas
"instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em
situação equivalente" (Carta Magna, artigo 150, inciso II), em detrimento
das regras legais da interpretação literal da lei que outorga isenção (Código
Tributário Nacional, artigo 111, inciso II), e da enumeração exaustiva das
doenças graves, para esta finalidade, uma vez que, segundo o laudo pericial, a
autora padece de patologia incurável, e de gravidade similar à daquelas
relacionadas na Lei 7.713/1988 (Artigo 6º, inciso XIV), a fim de que ela passe
a gozar da isenção requerida. 4. Apelação a que se nega provimento. (AC n.º
0008236-28.2004.4.01.3300/BA, Rel. Des. Federal Leomar Barros Amorim de SOUSA,
Rel. Conv. Juiz Federal Leão Aparecido Alves (Conv.), 8ª Turma, DJ 18.04.2008)
TRF
da 4ª Região
TRIBUTÁRIO. PRESUNÇAO RELATIVA DE
VERACIDADE DOS FATOS NAO IMPUGNADOS. INOCORRÊNCIA. DIREITOS INDISPONÍVEIS.
PRESCRIÇÃO. IMPOSTO DE RENDA. ISENÇÃO. LEI 7713/88. LEI 9250/95. MAL DE
ALZHEIMER. TERMO INICIAL.
1. [...]
2. Considerando que contra Maria Branco Câmara não corria
prescrição, porquanto incapaz, nos termos dos arts. 169, inciso I, e 5º, inciso
I, ambos do Código Civil de 1916, e do art. 198, inciso I, do Código Civil c/c
os arts. 79 e 103, parágrafo único, da Lei de Benefícios, e que entre a data do
óbito e o ajuizamento da presente demanda, não transcorreu interregno
suficiente ao reconhecimento, em prejuízo dos herdeiros, da ocorrência de
prescrição quinquenal, merece provimento, no ponto o apelo da autora, restando
prejudicado o apelo da União.
3. A Lei n 7.713/88 instituiu a isenção, ao portador de
doença grave, do imposto de renda retido na fonte sobre as parcelas recebidas a
título de aposentadoria/reforma.
4. A mens legis
da isenção é não sacrificar o contribuinte que padece de moléstia grave e que
gasta demasiadamente com o tratamento.
5. Embora o Mal de Alzheimer não esteja expressamente
previsto nos róis dos arts. 6°, inciso XIV, da Lei n° 7.713/88 e art. 39,
XXXIII, do Decreto nº 3.000/99, a jurisprudência dessa Corte e do STJ,
reconhecem o direito à isenção considerando que a doença, nos seus estágios
mais elevados, caracteriza-se pelo quadro de demência, alienação mental,
hipótese prevista em lei como autorizadora à isenção do tributo.
6. As provas juntadas aos autos demonstram suficientemente
que Maria Branco Câmara sofria de alienação mental desde 26/09/1996, dez anos
antes da perícia nos autos da medida cautelar de produção antecipada de prova
nº 2006.70.00.009001-7/PR. (AC n.º 5044564-59.2012.404.7000/PR,
Rel. Des. Federal Jorge Antônio Maurique, 1ª Turma, DJ 11.12.2013)
TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA.
ISENÇÃO. MOLÉSTIA GRAVE. DOENÇA MAIS GRAVE QUE AS ELENCADAS NA LEI ISENTIVA.
INTERPRETAÇÃO. PRESCRIÇÃO. REPETIÇÃO DO INDÉBITO. CORREÇÃO MONETÁRIA.
HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.
1. A doença que acomete a autora é grave, exacerbada pela
fibromialgia e pelo hipotireoidismo.
2. Não resta qualquer sinal de dúvidas quanto à gravidade do
quadro clínico de que padece a autora, sendo inegável a degeneração da região
vertebral lombar e sacral, quadro esse extremamente piorado em razão da
fibromialgia.
3. O legislador, ao editar a Lei 7.713/88, procurou elencar
as enfermidades graves e incuráveis que imprimissem ao seu portador, além de
condição de saúde de extrema precariedade, ainda o viés do alto custo com o
tratamento da mesma. Isso posto, parece-me óbvio que a intenção do legislador ao
editar tal norma foi claramente de desonerar aqueles que, em decorrência de
problemas graves de saúde, possuem elevados gastos em seu tratamento.
4. Tendo em vista as particularidades do caso concreto,
minuciosamente demonstrada, faz-se imprescindível interpretar a lei de forma
mais humana, teleológica, em que princípios de ordem ético-jurídica conduzam ao
único desfecho justo: ajudar na preservação da vida e na manutenção do
tratamento extremamente necessário, sem com isso prejudicar o normal atendimento
das necessidades básicas da autora.
5. Com efeito, resta plenamente configurada a necessidade da
recorrente de ver atendida a sua pretensão, legítima e constitucionalmente
garantida, uma vez que assegurado o direito à saúde e, em última instância, à
vida.
6. Assim sendo, faz jus a demandante à isenção do imposto de
renda quanto aos valores recebidos em decorrência de sua aposentadoria. (AC n.º 5011822-49.2010.404.7000/PR, Rel. Des. Federal Joel Ilan
Paciornik, 1ª Turma, DJ 04.08.2011)
O
voto do Exmo. Desembargador Relator proferido no julgado acima traz mais
detalhes sobre o posicionamento então adotado, merecendo destaque a seguinte
passagem:
A mens legis da
isenção é não sacrificar o contribuinte que padece de moléstia grave e que
gasta demasiadamente com o tratamento, beneficiando-o com a isenção de imposto
de renda na fonte.
Em que pese a determinação imposta pelo artigo 111 do CTN,
consistente na exigência de interpretação literal da legislação tributária que
outorgue isenção, tenho que essa regra não pode ser aplicada isoladamente, nem
entendida como obstáculo a uma interpretação teleológica.
[...]
Nesse andar, penso que o legislador, ao editar a Lei
7.713/88, bem como as demais sucessivas alterações legislativas, procurou
elencar as enfermidades graves e incuráveis que imprimissem ao seu portador,
além de condição de saúde de extrema precariedade, ainda o viés do alto custo
com o tratamento.
Isso posto, parece-me óbvio que a intenção do legislador ao
editar tal norma foi claramente desonerar aqueles que, em decorrência de
problemas graves de saúde, possuem elevados gastos em seu tratamento. Com
efeito, não se pode, simplesmente, subsumir ao comando literal da lei o caso
concreto sem aprofundamento aos seus vieses semânticos.
Conforme bem ressaltado pela ilustre Des. Federal Tânia
Escobar, "a lei, no momento que passa a viger, se desagrega do legislador
e se incorpora ao restante do sistema. Portanto, a interpretação literal dada
pelo órgão fazendário ao inciso XIV do art. 6º da Lei nº 7.713/88 não pode prevalecer.
Necessário empreender uma interpretação teleológica do referido dispositivo, de
modo a atingir sua melhor aplicação para a sociedade".
Efetivamente, temos que ter em mente que problemas de saúde,
por óbvio, sempre causam transtornos, gastos imprevisíveis, despesas com
medicamentos, se não de maneira permanente, até a completa estabilização da
condição física do adoentado.
Tendo em vista as particularidades do caso concreto,
minuciosamente demonstrada, faz-se imprescindível interpretar a lei de forma
mais humana, teleológica, em que princípios de ordem ético-jurídica conduzam ao
único desfecho justo: ajudar na preservação da vida e na manutenção do
tratamento extremamente necessário, sem com isso prejudicar o normal
atendimento das necessidades básicas da autora.
Não se pode apegar, de forma rígida, à letra fria da lei, e
sim. considerá-la com temperamentos, tendo-se em vista a intenção do
legislador, principalmente perante preceitos maiores insculpidos na Carta Magna
garantidores do direito à saúde, à vida e à dignidade humana.
Com efeito, resta plenamente configurada a necessidade da
recorrente de ver atendida a sua pretensão, legítima e constitucionalmente
garantida, uma vez que assegurado o direito à saúde e, em última instância, à
vida.
Ademais, os valores de que a União seria privada não afetam
substancialmente a arrecadação federal e nem causam prejuízo significativo ao
erário público.
Assim sendo, tenho que faz jus a demandante à isenção do
imposto de renda quanto aos valores recebidos em decorrência de sua
aposentadoria.
O princípio da
isonomia tributária deve prevalecer sobre as regras legais da interpretação
literal e da enumeração exaustiva das hipóteses de isenção por doença grave,
uma vez que segundo o laudo pericial, pode o cidadão padecer de patologia
incurável, e de gravidade similar à daquelas relacionadas na Lei n.º
7.713/1988, a fim de que ele passe a gozar da
isenção requerida.
De
outra parte, a interpretação literal, mandada observar, no caso, pelo artigo 111, III, do CTN, não exclui a incidência dos
demais elementos utilizados na interpretação jurídica. Neste sentido:
O
art. 111 do CTN, que prescreve a interpretação literal da norma, não pode levar
o aplicador do direito à absurda conclusão de que esteja ele impedido, no seu
mister de apreciar e aplicar as normas de direito, de valer-se de uma
equilibrada ponderação dos elementos lógico-sistemático, histórico e
finalístico ou teleológico, os quais integram a moderna metodologia de
interpretação das normas jurídicas. (STJ, REsp n.º 192.531/RS, Rel. Min. João
Otávio de Noronha, 2ª Turma, DJ 16.05.2005)
No
seu voto, salientou o Exmo. Ministro Relator:
Não
se deve concluir, como faz crer a recorrente, que o disposto no art. 111, II,
do CTN, estaria a vedar a aplicação de outros métodos de interpretação que não
a literal. Não, por esse entendimento não deve trilhar o aplicador do direito,
já que "una justa ponderación de los elementos gramatical,
lógico-sistemático, histórico y finalista o teleológico, parece el modo más
seguro de llegar a una interpretación que posea un valor de verdade y
rectitud" (LUIZ LEGAZ Y LACAMBRA, Filosofia del Derecho, p. 551, Bosch, Casa Editorial, S.A – 5ª edición).
Nesse
mesmo diapasão, o escólio de HUGO DE BRITO MACHADO, ao escrever que:
"[...]
a regra do art. 111 do Código Tributário Nacional há de ser entendida no
sentido de que as normas reguladoras das matérias ali mencionadas não comportam
interpretação ampliativa nem integração por equidade. Sendo possível mais de
uma interpretação, todas razoáveis, ajustadas aos elementos sistemático e
teleológico, deve prevalecer aquela que mais se aproximar do elemento literal.
É inadequado o entendimento segundo o qual a interpretação das normas
reguladoras das matérias previstas no art. 111 do Código Tributário não admite
outros métodos, ou elementos de interpretação, além do literal. O elemento
literal é de pobreza franciscana, e utilizado isoladamente pode levar a
verdadeiros absurdos, de sorte que o hermeneuta pode e deve utilizar todos os
elementos da interpretação, especialmente o elemento sistemático, absolutamente
indispensáveis em qualquer trabalho sério de interpretação, e ainda o elemento
teleológico, de notável valia na determinação do significado das normas
jurídicas”. (Curso de Direito Tributário, pp. 92/93, Malheiros Editores, 16ª
edição/1999).
Assim sendo, a aplicação do elemento teleológico, no
caso, também conduz ao reconhecimento da pretendida isenção, porque não há
dúvidas de que o objetivo da outorga deste favor fiscal é minorar a situação
financeira dos aposentados que são acometidos por doenças graves, porquanto a
maior parte dos recursos deles é direcionada ao custeio do tratamento médico, à
aquisição de medicamentos e ao atendimento de outras despesas, ocorrentes
nestes casos, tais como a contratação de profissionais na área da saúde.
Resta claro
que os Tribunais pátrios têm reconhecido de forma reiterada que a determinação
imposta pelo artigo 111 do CTN, consistente na exigência de interpretação
literal da legislação tributária que outorgue isenção, não pode ser aplicada
isoladamente, nem entendida como obstáculo intransponível para uma
interpretação teleológica no caso concreto.
Dessa forma,
verifica-se que o cidadão tem o direito à isenção legal do Imposto de Renda por
ser portador de patologia de gravidade similar àquelas arroladas na Lei em
referência, considerando o fato de que é portador de patologia de natureza
incapacitante e irreversível, caso tal situação seja previamente constatada em
laudo médico.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar da ausência de norma autorizativa
expressa, acreditamos que o ordenamento jurídico confere a possibilidade de
qualquer cidadão portador de doença grave, não passível de controle
(irreversível), ser tutelado, desde que devidamente comprovado por laudo
pericial médico, pela isenção do Imposto de Renda sobre os rendimentos
recebidos a título de aposentadoria ou pensão em benefício próprio.
Restou
demonstrado ao longo do presente artigo que a restrição contida na Lei n.º
7.713/88 e no Decreto n.º 3.000/99, notadamente a de que a isenção do Imposto
Renda somente seria concedida ao portador de doenças previstas nas respectivas
legislações, afronta diretamente os princípios da dignidade da pessoa humana
(artigo 1º, III, da CF/88), da isonomia (artigos 5º, caput, e 150, II, da CF/88), e aos artigos 6º e 196 da Constituição
Federal.
Isso porque, o princípio da
igualdade, seja ela formal ou material, é norteador do Direito pátrio, em todas
as suas ramificações, inclusive tributária, e está previsto na Constituição
Federal em seu artigo 5º. Ou seja, a
igualdade constitui princípio jurídico específico da tributação, segundo o qual
deve ser conferido, pela entidade tributante, tratamento uniforme a todos que
se encontre em situações assemelhadas. Daí a disposição constitucional que
garante tributação uniforme em todo território nacional.
Demonstrou-se, ainda, que, resta
patente a incapacidade humana de prever todas as situações de gravidade
garantidoras do benefício da isenção tributária prevista na Lei n.º 7.713/88.
Inerente, inclusive, à evolução dos tempos o surgimento de novas e graves
patologias, de modo que não é possível deixar de conferir referido benefício
àqueles que se encontram em situação idêntica, mas que, pela própria
deficiência humana de prever todos os infortúnios da vida, a doença de que é
portador não consta do rol legal.
Portanto, a exegese dos
dispositivos constitucionais acima mencionados, à luz dos princípios da
igualdade e da dignidade da pessoa humana, impõe a extensão do benefício
legalmente previsto também aos portadores de doenças graves e irreversíveis não
previstas no artigo 6º, XIV, da Lei n.º 7.713/88, tendo em vista que a finalidade desse
benefício é diminuir os sacrifícios dos enfermos, aliviando-os dos encargos
financeiros.
[1] “Art. 6º Ficam isentos do imposto de renda os seguintes rendimentos
percebidos por pessoas físicas: [...].
XIV –
os proventos de aposentadoria ou reforma motivada por acidente em serviço e os
percebidos pelos portadores de moléstia profissional, tuberculose ativa,
alienação mental, esclerose múltipla, neoplasia maligna, cegueira, hanseníase,
paralisia irreversível e incapacitante, cardiopatia grave, doença de Parkinson,
espondiloartrose anquilosante, nefropatia grave, hepatopatia grave, estados
avançados da doença de Paget (osteíte deformante), contaminação por radiação,
síndrome da imunodeficiência adquirida, com base em conclusão da medicina
especializada, mesmo que a doença tenha sido contraída depois da aposentadoria
ou reforma;”
[2] STF. RE n.º 271.286/RS, Rel. Min.
Celso de Mello, Informativo STF n.º 210, de 22.11.2000, p. 3.
[3] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo:
Saraiva, 2000, p.104.
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