Sobre “urgências” na advocacia
Você já correu hoje? Você vive
correndo? Coitadinho(a) de você. Credo em cruz. Eu também corria, até hoje. São
17:33 e posso pagar a língua amanhã mesmo e voltar a correr como um ratinho em
roda de laboratório.
Acabei de terminar uma petição
inicial de 17 páginas. Arre! E sou discípula de Hemingway (o Ernest), “escrever
é cortar”, e de Abgar Renault, (todo mundo sabe quem foi ele, não é?), “para que usar
duas palavras se posso usar uma só?” Conclusão das 17 laudas: o fato é complexo
e a história longa. Bingo! E consequentemente a questão de direito é complexa e
tem perícia das bravas. E o processo vai durar muitos anos.
Quatro sentadas ao micro computer, foi como medi, o que
significa quatro vezes dedicadas exclusivamente a escrever, fora as anteriores
e reuniões (três), telefonemas, (vários), e-mails (muitos), leitura de “trocentos”
documentos.
Quanto vale isso, caro leitor? Vale
muito, é óbvio. Ou “ábvio”, como soavam os gritos de célebre professor de processo
penal, soltando perdigotos nos desavisados da primeira fila, todos sem
guarda-chuva. Não digo o nome de jeito nenhum, não adianta pedir.
Mas aviso que não vais ganhar à
altura, jovem advogado que me lê. Aí entramos no terreno dos “depende”. Depende
de quem és, de quem é o cliente, tudo “inflói” (ouvi certa vez de um tipo bem popular).
Aí entram a luas, as marés, o lugar onde você nasceu, se o ano é bissexto, se você
assistiu direito às aulas de matemática e se liga pra dinheiro. Incluído o fato
que você precisa dele, dinheiro. Somado tudo e noves fora, verás que é muito difícil
fazer a América com a advocacia, se não tens alguns requisitos mínimos do foro
que me recuso a explicitar, mormente nestas plagas de Minas, dirão que é
braveza minha, que é dor de cotovelo, essas coisas das quais padecem quem está
de fora.
Abrindo caminho à unha, sem
quebrar (a unha), de pé e de salto.
Este preâmbulo enorme era para
falar de outra coisa, mas que tem tudo a ver, (como este Blog mudou!), (olha só
o linguajar!), (está muito pop),
posso ouvir daqui. Olha, um fato complexo desse exige tempo para destrinchar,
narrar sucintamente. E adequar o fato à norma (a lei), então, nem se fale! Isso
não se faz em uma
semana. O advogado tem outros processos, sabe? Outros assim
para analisar, prazos para falar nos autos (que coisa chique falar nos autos),
ouvir, ouvir, falar, falar, ler, ler. Pensar, pensar (está faltando tempo para
isso). E se for mulher advogada? Aí, meu bem, a porca torce o rabo. Os rapazes
podem pular essa parte, é chata... . Não vão se interessar. Tem que cuidar em
sentido amplo e restrito do(s) filho(s), lição de casa, horário no médico, no
dentista, na psicopedagoga, chamada na escola por motivo nada agradável, livro
infantil para ler, touca de banho para apresentação do poema “Tchibum”, lanche
nutritivo e balanceado, etc. E por aí vai, da feira à festa. Quando tem festa é
ótimo.
Conclusão: por isso advogado tem
fama de “enrolado”. Os clientes estão mesmo aflitos, mas nada em direito é
simples. Adotei a máxima porque é verdade.
Esse grande circunlóquio era para
dizer de recentes descobertas. A “urgência”, às vezes, revela-se uma falácia. (Voltou a falar difícil, tragam o dicionário).
Dois exemplos:
A cliente 1 pede providências
urgentíssimas, etc. e tal, te cobra, você manda procuração, contrato de honorários
e lista de documentos. O que acontece em seguida? Nada ,
rigorosamente nada. Silêncio total. Conclusão: não era urgente.
Cliente 2 faz consulta por
telefone, diz que tem pressa, manda e-mail com documentos, liga depois para
saber se já tem posição. Você, jovem advogado, diante de tamanha cena larga
tudo o que está fazendo, e sem poder, passa a noite debruçado sobre a questão
complexa, consulta a lei, a doutrina, firma posição, e escreve bonitinho, bem
claro, ele é leigo, não é mesmo? E finalmente à meia noite envia mensagem com o
parecer e ele não te responde. Mas não era urgente? Quando você liga para saber
se recebeu o importantíssimo trabalho solicitado, ele te responde sinceramente
que recebeu, sim, mas nem leu.
Por essas e por outras que hoje,
depois de cumprir essa tarefa hercúlea e sem despentear o coque, é que não
estou com pressa. Olhe que tem prazo vencendo amanhã, hein?
Tempo rei, ó tempo rei, ó tempo
rei. Salve Gilberto Gil.
08/05/2012
Tutela Antecipada – A Novela
ou
Temos que rezar antes de distribuir uma ação?
É uma novela, mas, a história é verídica, infelizmente para nós, advogados e clientes, e recente, recentíssima, aliás, ainda nem acabou. Mas, sem nomes, por favor.
Em dezembro do ano passado, 2010, propus uma ação ordinária para uma pequena empresa contra uma empresa de telefonia que apresentou uma conta de cem mil reais (a média de uso era de dois mil reais) e bloqueou as linhas pela falta de pagamento. De provas documentais um calhamaço. Mais uma vez a dd. Juíza não quis receber a advogada. Normal hoje em dia. Nunca querem. Tutela deferida, mas, tem que prestar caução; ganhou, mas não vai levar. Caução de R$ 100.000,00? Para uma empresa pequena? Quando a lei diz que a exigir caução é faculdade do juiz e não imposição legal? E em 48 horas! Apresentamos o estoque da empresa, tudo que tem, nada mais. Só nisso mais de 15 dias. Era urgente, a empresa sem telefone.
Às vezes, chego a pensar que para o serviço público urgência é uma ficção jurídica.
A magistrada não aceitou a caução, entendeu que eram bens de difícil comercialização e não duráveis. O fato é que não eram, nem uma coisa nem outra. Agravo de instrumento, urgente de novo, vamos lá, e a empresa sem telefone. Perto do Natal, do recesso, marchamos incontinenti ao gabinete do desembargador sorteado. Vai nos receber, aleluia! Mas enigmático, vaticinou o que viria a suceder: que azar o de vocês! Dito e feito. Ouviu o relato, frisei o pedido de liminar e despedi-me, alentada, mas dias e dias se passaram, e a decisão da LIMINAR?
Sobreveio o recesso, mas é liminar, corre nas férias (que não existem mais, saudades imensas das justas férias forenses), nos recessos e similares, onde estão os assessores? Veio a publicação muito depois, mas pasmem: deferindo o que não se pedira.
A esta altura nem assessora mais se encontrava, Natal, Réveillon, a empresa sem telefone, o cliente estarrecido com a justiça brasileira, a advogada, nem se fale! E agora? Embargos de declaração para solucionar o novo problema criado, e nada da decisão sair, mais uma visita ao gabinete, ao desembargador, à assessora, que nos olha de lado, de má vontade. Mas sempre pode piorar, diz o ditado. Pois, dito e feito: os embargos foram incluídos em pauta quando deveriam ser decididos monocraticamente. Mas na próxima sessão não podem entrar, passou o dia, só depois do feriado! E tem que publicar antes! O que se espera depois disso? Quem conserta um negócio desses? Esperamos e esperamos a publicação, e afinal os embargos foram julgados, deferidos pela Turma meses depois para conceder o efeito pretendido liminarmente, aceitar a caução e fazer valer a tutela concedida: desbloqueio “imediato” do telefone da empresa. Mas não acabou, noticiamos a concessão da liminar à Vara Cível em petição digitada em negrito em caixa alta com aquela ficção jurídica, a “urgência”, e nada da decisão sair, semanas se passaram. Saiu finalmente na semana passada. Comemoramos? Ou temos que fazer, como me disse uma vez um escrivão, peremptório: - Tem que rezar antes de vir para o fórum distribuir a ação, para não cair aqui.
Valei-nos, Santo Ivo.
A possessória de São João da Ponte
A comarca era a de São João da Ponte, sertão de Minas Gerais. Há vinte anos a estrada era de terra, a cidade empoeirada, o fórum uma modesta casinha, o juiz, carioca, tido como, no mínimo, extravagante e peladeiro no fim de semana. Ponto para o juiz.
Quem me levou tão longe foi um lavrador, era assim que ele próprio se definia, mas dono de terra. Em Montes Claros eu o via vindo de Varzelândia, outra lonjura no sertão norte mineiro, com uma sacolinha de plástico, a tiracolo, na cor laranja, cheia de papéis. Barbado, humilde, dentuço e ruço. Vinha procurar o advogado que estava "nem aí" para o cliente. E tome chá de cadeira, o advogado não aparecia nem mandava recado. O homem veio de tão longe de ônibus e esperava, paciente e calado na antesala do Edifício Ceosa, centro de Montes Claros.
Parenteses: dos prédios mais feios já vislumbrados em Minas Gerais, perdoem-me os arquitetos da obra. Pois, foi neste local que comecei a desbravar a advocacia, em pleno sertão. Várias vezes vi o homem esperando. - Mas, ele (o advogado) marcou com o sr? - eu perguntava. - Marcou e eu vim, respondia. E nada do causídico aparecer. Por fim, condoída da situação do moço, perguntei qual era a questão. Terras, inventários não feitos e possessória. Invadiram suas terras com o trator da prefeitura e derrubaram seu mandiocal.
Eu tinha, finalmente, minha primeira causa e munida de um livrinho excelente de Marco Aurélio S. Vianna, concluí que o caso era de reintegração de posse. Os primeiros honorários, o cliente trouxe na bolsa laranja, um maço de notas, quando recebi ele pediu que eu contasse e riu-se: a doutora não sabe contar dinheiro. Realmente não sabia. Fiquei sabendo que há técnica até para contar dinheiro. Mostrou-me como era: - É assim, ó - e passava as notas com experiência de quem lida com o comércio. Eu tocava piano. Achei graça da cena no escritório e não esqueci.
Finalmente fui distribuir a possessória. Ibiracatu, o local do esbulho pertencia à Comarca de São João da Ponte. Meu avô, o saudosíssimo Tião Souto, emprestou a caminhonete para a estrada de chão e meu tioavô, Onofre do Espírito Santo Veloso dirigiu e partimos para o sertão.
Na pequena casa do fórum, aguardei o juiz que sentenciava um réu no crime. Reparei no advogado, caboclo de óculos ray-ban naquela penumbra da Sala do Júri, e que viria a ser meu ex-adverso naquela possessória.
O juiz, vi logo, de maus bofes, nem aí para os meus verdes anos. Chamou o mapa que juntei de ordinário. Mas que atrevimento! Mas a petição, doutor! Clara, caprichada, objetiva. Quer mais? Cadê a prova, doutora? - Pedi inspeção in loco, Excelência. - Tem carro aí? Então vamos lá.
O autor, lavrador, o juiz, a advogada, o oficial de justiça Marlon e uma freira que precisava de transporte, além do sentenciado no crime, que também queria carona. Vamos lá. A freira e a advogada na boléia com o valoroso Tio Onofre, o juiz na carroceria com os demais. Merecia uma foto. Rumamos para o Distrito de Ibiracatu, e tome estrada de terra, o cliente vai orientando a estrada aos gritos. Algumas vezes Sua Excelência punha a cabeça para fora da capota e gritava - Está demorando chegar, hein, doutora?
E chegados finalmente o juiz inspecionou tudo, o mandiocal destruído, achou uma beleza a fabricação de tijolos que o cliente fazia com sua mãezinha já velhinha. A mulher "estava pra Sunpaulo mais os filho". O juiz concedeu a liminar e o Oficial circundou a área com fita amarela listrada de preto. O cliente não cabia em si de alegria. A presença do juiz de direito da comarca na sua casinha deu alma nova ao homem. Ele que era perseguido pelo desafeto funcionário da prefeitura agora tinha uma ordem do juiz proibindo a invasão de suas terras.
Depois do fato, reapareceu em Montes Claros de camisa social azul bem passada, vindo no mesmo ônibus empoeirado de Varzelância, mas barbeado e com uma capanga de couro no lugar da sacola laranja. Até a postura do homem mudou, empertigou-se, adquiriu status, afinal havia recebido a justiça em casa.
Passei hoje boas horas no Tribunal de
Justiça de MG. Vinha preparando há dias a sustentação oral, estudei os três
volumes de autos em pé
no Cartório , os autos não poderiam sair, pois já estavam
incluídos na pauta de julgamento, fiz anotações, redigi, melhorei, revi,
sintetizei. E lembrei mais uma vez de Piero Calamandrei, ele,
sempre ele:
"Faz quarenta anos que advogo, e
no entanto não seria capaz de ir a um julgamento para uma sustentação oral sem
ter me preparado, escrevendo um roteiro sumário do que vou dizer, bastante
elástico para modificá-lo se for preciso, mas bastante completo para lhe dar
clareza. E rejuvenesço toda vez que toda vez que devo sustentar oralmente,
porque, antes de começar, sinto no estômago aquele ardor que experimentava
antes de entrar na sala de exame quando era estudante, e depois, mal começo,
aquela espécie de sensação inebriante, que também então sentia diante dos
examinadores." (Eles, os juízes, vistos por um advogado, Piero
Calamandrei, Martins Fontes, São Paulo, 2000, p.43/44).
Hoje na sessão, a sala pequena lotada,
vários advogados e advogadas acotovelando-se no exíguo espaço de cá da cancela.
A sala escura, a luz forte da tarde pela janela alta vindo direto aos olhos do
advogado que assomava à tribuna. Para os fotofóbicos como os míopes, um
problema.
Duas advogadas jovens subiram à tribuna
e leram suas razões quando deveriam sustentar oralmente. Não tive paciência
para ouvi-las, sinceramente. A voz débil, o tom monocórdio me afugentaram. Lá
pela terceira leitura, um desembargador pediu a palavra e reclamou: "Estamos
todos no mesmo barco, juízes, advogados e promotores. Para que ler as razões
que já foram enviadas por memorial? Me desculpem, mas esta leitura monocórdia,
enjoada, não tem razão de ser e fere o regimento deste tribunal."
Antes disto advogados comentavam o fato
fora da sala de julgamento. Antes de mim subiu à tribuna colega bom orador,
desenvolto e respeitado, mas os juízes já desgastados pelas leituras enjoadas
não lhe prestaram atenção, aparentemente. Continuaram lendo votos e
assinando papéis. Levou tinta.
Chegada a minha vez, pedi inicialmente
os autos. Percebo o espanto da assistência pela novidade e vindo de uma
advogada. A segurança demonstrada por uma mulher sempre desperta essa surpresa.
Falei sem ler, obviamente. Tratava-se de uma apelação em ação de guarda de
menor. Suscitei preliminar da tribuna e ataquei com veemência a sentença
que deferira a guarda ao pai.
No início me olhavam, depois não mais,
como pareciam ler papeis alheios ao julgamento, calei-me na tribuna, sempre uso
este recurso. É o protesto do advogado que preparou-se para estar ali. O
Relator adiantou o rosto além da vogal como a demonstrar-me que ouvia.
Continuei. Os outros também olharam. Ao proferir o voto o relator mencionou o
fato: "a ilustre advogada, a certa altura parou de falar, julgando
que não estivéssemos prestando atenção, mas eu queria esclarecer que às vezes
conversamos justamente sobre o que está sendo dito da tribuna."
É a segunda vez que o desembargador me faz essa mesma observação.
O Relator, o mesmo que havia desancado
as normas de direito ambiental no julgamento anterior, desancou minha cliente e
negou provimento: "Criança não é parabrisa, que fica de uma
lado para o outro." "Assinou, acabou, assinatura
não é brincadeira, é coisa séria." E respondeu algumas
afirmações que fiz da tribuna, com veemência também, sinal que ouviu, ouviu e
não gostou. O revisor secundou o relator e destacou que ouviu a sustentação
oral e que a oradora se houve bem na função. A vogal pediu vista, ufa! Embora
esteja em desvantagem, um voto favorável poderá possibilitar o recurso de
embargos infringentes, seja para fazer a preliminar de nulidade de sentença
pelo cerceamento de defesa fazendo baixar os autos em diligência, seja para dar
provimento.
Posso estar enganada, mas vi aqui a
sensibilidade feminina em ação no pedido de vista. E senti a ratio inflexível
no voto dos desembargadores.
Antes de subir a tribuna, fui andar de
salto no tapete vermelho sobre o andar de madeira suspensa até as grandes
janelas do hall. Além da janela a tarde de sol intenso e uma gigantesca árvore
sobressaindo sobre as demais no Parque Municipal. Aquele sol intenso e esse ar
seco lembraram-me o sertão de onde eu vim. Cumprimentei o guarda e voltei para
a sala de julgamento.
Sala das Sessões, 25 de agosto de 2011.
EOAB - art. 7º, IX - São direitos do
advogado: sustentar oralmente as razões de qualquer recurso ou processo, nas
sessões de julgamento, após o voto do relator, em instância judicial ou
administrativa, pelo prazo de 15 minutos, salvo se prazo maior for concedido.