quarta-feira, 11 de abril de 2012

Anencefalia - dois pensadores em divergência

Em curso mais um julgamento histórico pelo STF,  do aborto de anencéfalos. A essas horas já sabemos que o relator Min. Marcio Aurélio Mello votou favoravelmente. Ontem os jornais já estampavam opiniões contra e a favor, histórias reais, fotos impactantes. O tema é grave e a decisão difícil.

Para refletir o Blog reproduz artigos de dois pensadores de peso que divergem sobre o grave tema. Frei Cláudio Van Balen e Professor João Baptista Villela. Os artigos, de 2004,  falam por si, sem apresentações e dispostos pelo tempo inverso.

Viver é perigoso, já dizia Guimarães. Este é, já antecipado, o comentário do Blog.


CRÔNICA

Fé e Ética na Perspectiva da Anencefalia

João Baptista Villela


        O Carrilhão, órgão informativo da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Belo Horizonte, trouxe, na última página da edição de junho/julho de 2004, matéria subscrita por Frei Cláudio van Balen e Sérgio Bittencourt, intitulada “Anencefalia na Perspectiva da Fé e da Ética”.  Nela, os autores se manifestam categoricamente favoráveis à interrupção da gravidez, quando comprovado que o feto padece da limitação de anencefalia, isto é, não tem um ou ambos os hemisférios cerebrais.  A conclusão pretende ser o resultado de um exame da anencefalia à luz da fé e da ética.
        Ocorreu-me que, talvez, contribuísse para o esclarecimento dos leitores tornar a questão pelo inverso.  Isto é, contemplar a fé e a ética na perspectiva da anencefalia.
        Logo ao início de suas reflexões, Frei Cláudio e Sérgio Bittencourt nos convidam a ser “avessos a sacrifícios e holocaustos”.  Certamente, nem a ética nem a fé fazem apologia do sacrifício.  Quem, entretanto, conhece a mensagem evangélica sabe que o sacrifício está no epicentro de nossa vocação.  Não somos chamados a infligir o sofrimento.  Nem aos outros nem a nós mesmos.  Mas sabemos que o sofrimento, no limite, é inseparável da experiência humana e está visceralmente presente no mistério da vida.  A anencefalia, que é sofrimento e vida ao mesmo tempo, pensa que a ética está ao serviço da vida, mesmo da vida enferma ou precária.  E supõe encontrar na fé o lenitivo do sofrimento.  Portanto, vê uma e outra como aliadas e esperaria dos que pregam e ensinam antes conforto que condenação.
        Frei Cláudio e Sérgio Bittencourt acham que manter a gravidez dos anencefálicos gera despesas supostamente inúteis.  Para que gastar com uma vida que terá a duração de apenas algumas horas ou poucos dias?  Há os que pensam assim.  Hoje e ontem.  Um deles, que teve na mãos incalculável poder político e militar, chegou a instituir, em 1939, um bem-urdido programa de extermínio maciço de “vidas inúteis”.  A iniciativa ficou conhecida como Aktion T4.  Estima-se que tenha eliminado até 8.000 crianças tidas por deficientes físicos ou mentais.  Entre adultos e crianças, o total de vidas que encontraram fim por essa via pode ter chegado a 200.000. Segundo os autos do processo de Nürenberg, seriam 275.000.  No “Evangelho” do criador do Aktion T4 – isto é, na obra que ele próprio escreveu e que não se chama propriamente assim -, pode-se ler que “quando faltam forças para lutar pela própria saúde, cessa o direito de viver” (aqui traduzido direta e literalmente do original alemão).
        Na perspectiva da anencefalia a visão é diversa.  A dignidade da vida não depende de sua higidez.  Nem de sua duração.  Onde quer que esteja presente o sopro da vida humana, aí está um valor intocável, ante o qual todos nos devemos curvar.  Isso é particularmente verdadeiro em relação à fé.  Nascido com vida, o anencéfalo acha-se proposto, na invalidez de seu corpo frágil, ao sacramento do batismo.  Recebendo-o, incorpora-se definitivamente ao Corpo Místico de Cristo.  Pouco importa que, ato contínuo, sobrevenha a morte.  Tal como o Código Civil, a comunhão dos santos não exige o requisito da viabilidade.
        De resto, a vida não se conta pelos janeiros.  Nem pelos minutos.  Mas pelo que dela fazemos.  Um segundo pode ser o tempo que separa um pecador de um santo.  A conversão pode ser o fruto de uma longa e tormentosa reflexão, mas pode ser também a graça de um estalo.  Nada, pois, é mais estranho ao mistério do cristianismo do que uma contabilidade ética fundada na duração do tempo.
        Os anencéfalos não são capazes da vida de relação, dizem Frei Cláudio e Sérgio Bittencourt.  Isso é apenas em parte verdadeiro.  Os anencéfalos choram, mamam, reagem à luz e ao calor.  Não por muito tempo, é verdade. Mas pais que os tiveram relatam a emoção ímpar que experimentaram a partir dessa breve e intensa comunhão com seus bebês. E a doce paz que os inundou, depois de tudo chegar ao fim segundo o curso natural da vida.  O bebê entrou para a história da família.  Recebeu um nome.  Fez parte da sociedade civil.  Cumpriu um destino. Ganhou um sepultamento.  Deixou memória.
        De qualquer modo, é certo, as funções de relação dos anencéfalos não vão muito além.  Terão, por isso perdido o direito de viver o tempo que a natureza lhes concedeu?  Também precárias ou nulas são as funções de relação dos pacientes em coma dito “irreversível”.  Devemos, então poupar os custos financeiros e os sofrimentos de mantê-los vivos e, portanto, acabar logo com suas vidas?  Suprimi-las ativamente, sob a forma de um aborto provocado?  Nem mesmo esperar que a natureza faça seu trabalho, dando-lhes, ela própria, a morte quando a força vital se extinguir?  Dos pacientes que sofrem do mal de Alzheimer quantos ainda têm alguma comunicação com o mundo exterior?  Dispensemos aos que não a têm o fardo de viver e às suas famílias o encargo de os suportar? Talvez o SUS agradecesse, mas a ética e a fé, pelo menos vistas na perspectiva da anencefalia, estranham e se constrangem.  É que a anencefalia não é um espaço de cálculo, senão antes um lugar de encontro da vida com a dor e em que, portanto, não cabem limites nem reservas, mas apenas reverência e compaixão.
        Em pelo menos um ponto a anencefalia se reconhece no texto de Frei Cláudio e Sérgio Bittencourt.  É quando eles pedem respeito ao “fluxo natural da vida”.  Os anencéfalos, sabemos todos, não têm sobrevida longa.  Pelo menos não a têm no estágio atual da ciência.  Participam fugazmente do banquete da vida.  A força vital que carregam até o nascimento está preordenada, no mistério da criação, a esse breve momento de luz e comunhão conosco.  Por que substituir “o fluxo natural da vida” pela nossa vã ciência e nossa fé, antes avara que generosa?
 João Baptista Villela
Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.

ANENCEFALIA NA PERSPECTIVA DE FÉ E ÉTICA
Deus nos fez filhos seus para que, na liberdade, nos conduzíssemos como pessoas autônomas e não como escravos. Longe do medo e cheios de coragem responsável, somos convidados a imprimir direcionamento e sentido a nosso viver neste mundo. Avessos a sacrifícios e holocaustos, a divina compaixão é nossa riqueza. A própria morte assumida com dignidade se faz limiar de ingresso para vida em plenitude. “Onde eu estiver, vocês estarão”. (João 17,24) Mais que objeto, somos seres relacionais.

Ética tem como objetivo o bom cuidado pela vida e por tudo o que lhe diz respeito. Sua essência está em fazer reconhecer e defender o valor único da pessoa, sua dignidade dentro de suas possibilidades de relacionamento, que estão no coração da convivência e na base de todo progresso. Ora, em matéria de anencefalia e de morte encefálica é hora de acolhermos, com visão crítica, os dados da ciência e as luzes da fé cristã. Não vale preconceito social, sectarismo religioso nem integrismo jurídico com cegueira, passividade e intolerância.

A ética, estimulada por cidadania e pela fé, orienta na elaboração de respostas às interrogações do mundo contemporâneo. É ausência de lucidez avaliarmos fatos através de uma religiosidade retrógrada ou de uma ciência bitolada e preconceituosa. A ética remete à consciência dessa responsabilidade de imprimir dignidade ao viver, inclusive assumindo a morte. A anencefalia - ausência de um hemisfério cerebral ou de ambos - e a morte cerebral - estado de perda irreversível das funções do córtex e do tronco cerebral – impossibilitam as funções de relação. Cessa a ventilação pulmonar, a pressão arterial, o reflexo ocular motor, a respiração, a temperatura, a homeostase bioquímica. Impõe-se a morte clínica.

Eticamente é importante reconhecer, quanto antes, essa situação. Do contrário, se cria uma situação de estresse familiar, nutrindo falsas esperanças. Em gestações de crianças anencefálicas, a mãe funciona como um aparelho ligado até o momento do parto. Há, aqui, um problema ético. Interromper essa ligação é uma opção ética, um gesto de fé adulta pois, se não for feito, a mãe e a família se vêem obrigadas a um sofrimento perverso e a um gasto financeiro inútil e prejudicial ao bem comum. 

Nesse caso, a interrupção da gravidez nada tem a ver com aborto, pois a vida não existe sem a mãe-aparelho. Ao se proibir tal recurso, o feto é impedido de despedir-se de uma vida que já não existe, o que implica desrespeito para com a mãe, sendo s tratada como simples objeto sem dignidade nem direito. Parece que, então, a mãe é reduzida a sepulcro de seu próprio feto. Segundo consta, não há nenhum registro de criança acometida de anencefalia, cujo coração bata, maquinalmente, por mais de algumas horas ou de alguns dias após o parto. Cabe a pergunta: Por que é preciso aguardar nove meses? Em nome de quê e de quem negar o óbvio? Nesse caso, não há vida humana possível; a sobrevida é sempre artificial e penosa para a mãe, a família, a equipe de saúde e a própria sociedade.

De fato, há um grave problema social : um profundo desconforto familiar e um desgaste desnecessário no trabalho infrutífero dos agentes de saúde. A situação é desumana. A ética nos faz clamar contra a injustiça de maus tratos com desgaste emocional e com gastos financeiros sem propósito. Insistir em tratamentos estéreis é mera obstinação terapêutica, impondo a outros o que não se quer para si. Tal postura implica também uma imperdoável incapacidade de aceitação do fim da vida. Negar a morte encefálica significa esquivar-se, hipocritamente, impondo aos vivos um sofrimento sem sentido. Quem alude ao “carma”, mostra-se desumano e anticristão.

Urge criar uma sensibilidade cristã com cidadania solidária frente a preconceitos emocionais, culturais, jurídicos e religiosos. Urge aprender a respeitar o fluxo natural da vida. Urge não empurrar famílias para um mar de sofrimento, que não gera benefícios. Ninguém tem direito de expor ao ridículo a limitação do ser humano. Não há motivo para encobrir a realidade com prepotência jurídica e religiosa, espelhando irresponsabilidade na prática da fé cristã e no exercício da cidadania. 

Somos convidados a superar o preconceito contra a morte, como se ela não fosse parte da vida. A morte é, sob múltiplos aspectos, a criação da vida. A ninguém cabe resgatar, ilusoriamente, as pessoas para uma dor prolongada. Médico, enfermeiro, psicólogo, profissionais de saúde, agentes religiosos são chamados a defender a vida. Vida de boa qualidade. Jesus advertiu: “Ninguém imponha a outros um peso que não deseja carregar” (Lucas 11,46).
* * *
Frei Cláudio van Balen:Teólogo e Psicólogo 
Sérgio Bittencourt: Psicólogo e Ambientalista
Autores do livro : ASAS NA RAÍZ (fotos de flores e poemas).




2 comentários:

  1. Excelente a posição do Professor. Para Frei Cláudio e Sérgio Bittencourt a vida tem que ter um sentido utilitário. Se não for mais útil (ou começar a dar prejuízo) deve ter outro destino. Podemos até entender essa posição vinda de um leigo. Mas, vinda de um padre, é inaceitáve.

    ResponderExcluir
  2. Caro Paulo Henrique, grata pelo seu comentário. Um outro leitor enviou-me e-mail no qual adere ao pensamento de Frei Cláudio não obstante as duras reflexões do Professor João Baptista Villela. Disse-me esse leitor: "para mim é uma questão de misericórdia." Vemos como um posicionamento pode despertar sentimentos e ideias opostos. A diversidade de ideias torna o mundo e a vida mais ricos sobretudo se respeitamos os divergentes. Respeito ambos os pensadores publicados e posso dizer que privo da convivência de ambos, para engrandecimento meu. Respeitá-los na diversidade de pensamento é um exercício e uma riqueza. O mundo é grande, cabe todo mundo, inclusive o imponderável, como um padre professar ideias próprias.O Blog está aberto à diversidade de ideias.

    ResponderExcluir

O dia a dia de uma advogada, críticas e elogios aos juízes, notícias, vídeos e fotos do cotidiano forense

Persistência contra jurisprudência majoritária

E nquanto a nossa mais alta corte de justiça, digo, um dos seus integrantes, é tema no Congresso americano lida-se por aqui com as esferas h...