quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Coisa julgada, vício insanável e segurança jurídica



Fabrício Veiga Costa
Advogado, especialista, mestre e doutor em direito processual pela PUC Minas, professor universitário, membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais- IAMG


A superação da possibilidade de convalidação de atos processuais nulos e inexistentes a partir da noção cronológica de coisa julgada é imprescindível para o aprimoramento do debate científico do tema proposto numa concepção crítico-reflexiva

A proposição de um debate crítico acerca do dogma da coisa julgada perpassa pela reconstrução teórica do instituto da segurança jurídica trazido pelo Código de Processo Civil (CPC) brasileiro de 1973. O instituto da coisa julgada, tal como foi preconizado por Alfredo Buzaid, decorre inicialmente da dicotomia existente entre coisa julgada formal e coisa julgada material, ressaltando-se a imutabilidade e a indiscutibilidade da decisão judicial como características ínsitas da coisa julgada material.

Verifica-se, portanto, que o conceito de coisa soberanamente julgada é produto de uma concepção cronológico-ideológica de que depois do transcurso do prazo bienal da rescisória torna-se impossível pensar em qualquer modificação do conteúdo decisório do ato processual final. É nesse contexto que encontramos o fundamento regente da máxima: “A coisa julgada faz do branco o preto; do quadrado o redondo”. Conclui-se, previamente, que o legislador do CPC de 1973 permitiu a possibilidade do trânsito em julgado de decisões judiciais inconstitucionais no momento em que estabeleceu o critério cronológico como parâmetro de alegação de eventual nulidade processual. A ideologização (não teorização) do instituto da coisa julgada material a partir de uma interpretação dogmática do CPC fundamenta a possibilidade de convalidação de atos processuais nulos e inexistentes depois do transcurso do prazo bienal da rescisória.

Em contrapartida, o legislador da Constituição de 1988, no artigo 5º, XXXVI, trouxe o princípio da segurança jurídica que estabelece que a lei não prejudicará a coisa julgada, o ato jurídico perfeito e o direito adquirido. Importante ressaltar a incompatibilidade do debate teórico da segurança jurídica com o Estado democrático de direito, haja vista que o dogma da coisa julgada e da segurança jurídica não pode ser visto como parâmetro jurídico para limitar o controle das instituições democráticas e dos provimentos estatais. 

A leitura que se pretende propor é que no Estado democrático de direito a concepção teórica mais adequada sobre o instituto da segurança jurídica decorre do entendimento de que o critério para assegurar o trânsito em julgado de uma decisão judicial é a sua constitucionalidade (não uma questão meramente cronológica e temporal). A superação da possibilidade de convalidação de atos processuais nulos e inexistentes a partir da noção cronológica de coisa julgada é imprescindível para o aprimoramento do debate científico do tema proposto numa concepção crítico-reflexiva.

O instituto da ação rescisória, previsto expressamente no artigo 485 do CPC, é a exteriorização mais clara de que o instituto da coisa julgada funda-se em parâmetros cronológicos de compreensão do direito processual civil. O rol taxativo das hipóteses de cabimento da ação rescisória no prazo de dois anos a contar do trânsito em julgado materializa a possibilidade de alegação de nulidades processuais decorrentes da violação de normas infraconstitucionais. Ressalta-se que a intenção do legislador do CPC vigente não foi oportunizar a desconstituição da coisa julgada material a partir da alegação da existência de nulidade processual decorrente da violação de norma constitucional. 

O advento do instituto jurídico da querela nullitatis insanabilis justifica-se no sentido de oportunizar, a qualquer tempo, a alegação de vício insanável em decisão judicial transitada em julgado. Com previsão inicial no direito romano, o instituto foi estudado pelo processualista italiano Piero Calamandrei e hoje materializa a possibilidade de o jurisdicionado buscar a qualquer tempo a declaração de nulidade de decisão judicial eivada de vício insanável de natureza constitucional. Considera-se vício insanável todo aquele de natureza transrescisória, ou seja, a demonstração da existência do vício insanável perpassa pelo esclarecimento jurídico de que no momento em que a decisão judicial transitou em julgado violou uma norma jurídica constitucional. O fundamento jus-filosófico do debate ora proposto advém da impossibilidade da ciência do direito reconhecer a convalidação jurídica de uma decisão judicial proferida em absoluto descompasso com a Constituição vigente. 

Não se pretende aqui defender a institucionalização da insegurança jurídica mediante a possibilidade de revisão judicial indiscriminada de qualquer decisão judicial transitada em julgado. O instituto da querela nullitatis insanabilis, sem previsão legal expressa no direito brasileiro e produto da construção doutrinário-jurisprudencial, vem sendo estudado pelos juristas com a finalidade de garantir a implementação do princípio da segurança jurídica ao impossibilitar a imutabilidade e a indiscutibilidade (trânsito em julgado) de uma decisão judicial que tenha violado diretamente dispositivo constitucional.

A querela nullitatis insanabilis poderá ser proposta a qualquer tempo pela parte juridicamente interessada (inclusive no prazo bienal da rescisória se a hipótese de alegação de nulidade da decisão tiver fundamento constitucional), será processada e julgada no mesmo juízo que seria competente para julgar a ação rescisória, tem como objeto a alegação de vício insanável e, em caso de procedência, terá como efeito a desconstituição da decisão judicial.

(Publicação original, Estado de Minas, Caderno Direito & Justiça, 05/12/2011). Publicado com autorização do autor.


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