Professor Emérito na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais
A LEI E OS JUÍZES
A lei, sabem-no todos, é apenas uma das fontes do direito. Há outras. No sistema de direito em que se inscreve a República Federativa do Brasil, é, entretanto, a principal. É a ela que estão vinculados os juízes. São eles os que, por excelência, as aplicam. No rigor da expressão, são seus servos. Servos esclarecidos, espera-se, mas servos sempre e não senhores. Têm consciência disso? Muitos, seguramente. Outros, ao que parece, nem tanto. Há os que dão mostra de certo enfado na função de aplicar a lei, mesmo sem pôr em dúvida seus acertos e suas qualidades. Ou exprimir constrangimento diante de seus termos, porventura injustos ou inadequados.
Um interessante exercício de sociologia jurídica seria buscar as razões pelas quais os juízes tantas vezes dão mostras de tédio e fastio no que constitui, por antonomásia, o seu ministério: aplicar a lei. Mesmo que seja boa, sensata e razoável. Por quê?
A investigação talvez fosse mostrar uma história não muito edificante da lei. Expressão simbólica da ordem e da razão, não foram poucas as vezes em que, ao longo da história, a lei serviu ao arbítrio. Já patrocinou horrores e atentados contra homens, mulheres e crianças. Foi instrumento de ditadores e tiranos. E vestiu de normalidade atos da mais hedionda opressão. Não sem motivos, pois, a máxima pro jure etsi contra legem sempre gozou de larga estima no ambiente jurídico em geral. Estar com o direito, mesmo se contra a lei é, a todos os títulos, uma divisa impecável.
E não é só. Na história do pensamento jurídico, a lei viu-se, em certos momentos, identificada com rigidez, miopia intelectual e acanhamento de raciocínio. Foi natural que isso deixasse uma herança que não agrada aos juízes. No apogeu da escola exegética, entendeu-se que o papel do juiz era pouco mais que o de um operador a bem dizer mecânico: Subsumia o fato na lei e pronunciava a sentença. Por metonímia, tudo era como se o juiz não passasse de uma vocalização do legislador. A imagem tinha tudo para corresponder à idéia e não poderia ser mais feliz. Virou mesmo praxe dizer-se que o juiz era “a boca da lei”. Ou, na língua-mãe da escola, la bouche de
Multiplicaram-se então os expedientes para corrigir ou, até mesmo, substituir a lei: equidade, princípios gerais do direito, fins sociais da norma, exigências do bem comum. Dependendo do caso, vedação do enriquecimento sem causa, teoria da base negocial, desconsideração da personalidade jurídica, excessiva onerosidade. E, sempre, rigorosamente em qualquer situação, a indefectível dignidade da pessoa humana. O que isto significa, esconde-se na cabeça dos juízes, pois, quase nunca se dão ao trabalho de explicá-lo. Contentam-se com dizê-lo, como se a expressão fosse o fundamento de si própria.
A lei perdia, assim, gradualmente a majestade e condenava-se a ser apenas mais um dos muitos ingredientes na variada cozinha dos sabores e temperos do direito.
Feitas essas concessões, é preciso reconhecer, reafirmar e cumprir o que tantas vezes já se proclamou: Fora da lei não há salvação. É essencialmente por ela e com ela que se expressa e se realiza o Estado de Direito. Todo cidadão da República tem não apenas a faculdade de pautar sua conduta pelas leis do País, de ser julgado pelo que elas disserem, mas também a garantia de saber que elas continuarão a dizer amanhã o que dizem hoje, salvo quando alteradas segundo o devido processo que elas mesmas criam e fazem respeitar. É por força das leis que os excessos se reprimem, o arbítrio se contém, as diferenças convivem, a insegurança cede o passo à certeza, a honra se preserva e a esperança renasce a cada dia. Por inobservância da lei é que se dá o habeas corpus e se expede o mandado de segurança. A simples quebra dos bons princípios ou o desvio das venerandas máximas do direito não bastam a essas garantias maiores.
Desde a Constituição Imperial de 1824 muitas novas leis sobrevieram ao Brasil. Inclusive outras Constituições. Tivemos várias. Desde então, salvo o triste e episódico eclipse imposto pela Constituição de 1937, lá estava sempre garantido o bom e velho primado da lei: “Nenhum cidadão”― dispunha, por exemplo, a Constituição Imperial de 25 de março de 1824 ― “pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude da lei” (Art. 179, 1º). Mesmo quando essa declaração tenha estado mais próxima do credo que da práxis, sua inscrição nas pedras da lei confere-lhe a força atávica de um símbolo. Não foi na mera invocação que faz à lei ― I crave the law ― que von Jhering identificaria uma excepcional contribuição de Shylock, o trágico anti-herói shakesperiano (The Merchant of Venice, IV, 1)?
A submissão à lei, entenda-se, implica a faculdade e o dever de interpretá-la, e se refere antes ao seu espírito que à sua letra. Nem é de se excluir a hipótese radical em que caiba ao juiz resistir à sua aplicação quando um valor ético superior o exija. Opor-se à lei iníqua, tal como fez Antígona, a emblemática personagem de Sófocles, não é subtrair-se aos próprios deveres, senão dar-lhes mais perfeita execução.
Quem quer que observe o panorama jurídico do País e sobre ele reflita perceberá, contudo, que, decididamente, este, por que passamos, não é um momento de esplendor e glória da lei. Está longe de ser raro ou mesmo infrequente o afastamento de sua observância sem razões plausíveis ou consistentes.
O juiz que, sob a fé no primado da lei, se empenha em aplicá-la de modo consciente, crítico e reflexivo; que, ao fazê-lo, não perde a percepção global do ordenamento jurídico; que tenha olhos para a realidade política, econômica e social, ouvidos para os clamores da sociedade, alma sensível e mente aberta poderá não vir a ser um popstar. É pouco provável que desperte o interesse da mídia ou suscite a corrida inquieta dos microfones e dos holofotes. Talvez não tenha a gratidão de sua Pátria. Nem o reconhecimento dos contemporâneos. Desagradará a muitos e não estará livre da solidão. Mas terá sido um servo fiel do seu ofício. Não é pouco.
Belo Horizonte, 15 de agosto de 2010.
(Artigo publicado na Revista da Editora Del Rey, nº 23, p.62/63, agosto 2011 e reproduzido neste blog por expressa autorização do autor a quem agradecemos a deferência).
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