quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Guarda compartilhada, comentário ao artigo 1.583 do Código Civil

Marco Túlio de Carvalho Rocha*










CAPÍTULO XI
DA PROTEÇÃO DA PESSOA DOS FILHOS1

Art. 1.583. A guarda será unilateral2 ou compartilhada.3 (Redação dada pela Lei nº 11.698, de 2008).
§ 1º Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5º) e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).4
§ 2º Na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos: (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014) 5
I - (revogado); (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014)
II - (revogado); (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014)
III - (revogado). (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014)
§ 3º Na guarda compartilhada, a cidade considerada base de moradia dos filhos será aquela que melhor atender aos interesses dos filhos. (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014)6
§ 4º (VETADO). (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).
§ 5º A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos, e, para possibilitar tal supervisão, qualquer dos genitores sempre será parte legítima para solicitar informações e/ou prestação de contas, objetivas ou subjetivas, em assuntos ou situações que direta ou indiretamente afetem a saúde física e psicológica e a educação de seus filhos. (Incluído pela Lei nº 13.058, de 2014)7

Direito anterior: Art. 325 do Código Civil de 1916; art. 9º da Lei n. 6.515/77 (Lei do Divórcio). Na redação original do Código Civil, o dispositivo consagrava o direito de os pais decidirem sobre a guarda dos filhos quando a separação ou o divórcio fossem consensuais; a Lei n. 11.698/2008 alterou o artigo, que passou a regular a guarda unilateral e a compartilhada, introduzindo, pela primeira vez, previsão sobre esta no direito brasileiro; a lei n. 13.058/2014, alterou os §§ 2º e 3º e incluiu o § 5º com o escopo dar preferência à adoção da guarda compartilhada.
Referências normativas: Maior interesse da criança: art. 227 da Constituição da República; parentalidade responsável: art. 227, § 7º, da Constituição da República; igualdade entre homens e mulheres: art. 5º, inciso I da Constituição da República; igualdade dos cônjuges: art. 226, § 5º da Constituição da República; poder familiar após o divórcio: art. 1.579 do Código Civil; poder familiar independente do estado civil dos pais: art. 1.634 do Código Civil; poder familiar após novas núpcias: art. 1.636 do Código Civil; direito de visitas: art. 1.589 do Código Civil; direito de ter o filho em sua companhia: art. 1.632 do Código Civil; arts. 33 a 35 da Lei n. 8.069 (Estatuto da Criança e do Adolescente); alienação parental: Lei n. 12.318/10; ação de exigir contas: arts. 550 a 553 do Código de Processo Civil.
1. Da proteção da pessoa dos filhos. O título do capítulo é uma reminiscência do que dispunha o Código Civil de 1916 a respeito da guarda dos filhos em decorrência do desquite (separação judicial). Uma vez que a situação dos filhos em relação aos pais não mais depende do estado civil destes, correto seria que todas as disposições sobre guarda fossem reunidas no capítulo relativo ao poder familiar (arts. 1.630 a 1.638), pois a guarda dos filhos dele decorre.
2. Espécies de guarda. Guarda é a função, isto é, um conjunto de direitos e de deveres, que a lei atribui a uma pessoa capaz para zelar pelos interesses de um incapaz. A guarda dos filhos pelos pais decorre do poder familiar.
Todas as possíveis combinações do exercício da guarda de filhos relativamente aos pais ou a alguém que os substitua foram classificadas pelo artigo 1.583 do Código Civil, com a redação que lhe foi dada pela Lei n. 11.698/2008, em duas espécies: a guarda unilateral e a compartilhada. A guarda compartilhada, em contraposição à unilateral, deveria ser a que tem por titular mais de uma pessoa. O § 2º ressalvou, no entanto, que nessa espécie de guarda os guardiães não vivem sob o mesmo teto. Desse modo, extraem-se a partir deste dispositivo não duas, mas três espécies de guarda, conforme a situação jurídica de seus titulares:
a) Unilateral (guarda dividida, sole custody): guarda exercida por apenas um dos pais ou por terceiro que os substitua (§ 1º);
b) Compartilhada (joint custody): guarda atribuída simultaneamente a mais de uma pessoa, que habitem em locais distintos (§ 1º, in fine);
c) Conjunta: guarda exercida por pais que coabitam (art. 1.634, inciso II, Código Civil).
Assim, segundo a classificação legal adotada pelo Código Civil, é espécie de guarda compartilhada a guarda alternada (divided custody), isto é, a atribuída a pessoas domiciliadas em locais distintos, e que têm o filho menor, separadamente, por períodos iguais alternados.
No common law, há dois tipos de guarda compartilhada:
a) Legal ou jurídica;
b) Física.
A guarda compartilhada jurídica atribui a ambos os pais separados a responsabilidade pelos direitos e deveres decorrentes do poder familiar. A manutenção dos direitos e deveres decorrentes do poder familiar em caso de divórcio (art. 1.579 do Código Civil) ou de novas núpcias do titular do poder familiar (art. 1.636 do Código Civil) é da tradição do direito brasileiro. Vale dizer, no Brasil, os direitos e deveres inerentes ao poder familiar decorrem deste e pouco são tocados com a alteração da guarda. Com a vênia dos autores de uma das melhores monografias sobre o tema (MADALENO, Rafael; MADALENO, Rolf. Guarda compartilhada: física e jurídica. 2. ed. São Paulo: RT, 2016, p. 173 e ss.), que sustentam posição contrária, ao instituir a guarda compartilhada, a Lei n. 11.698/2008 não criou a guarda compartilhada jurídica, pois o compartilhamento da responsabilidade parental sempre existiu na ordem jurídica pátria.
A guarda compartilhada física, diferentemente, é a delineada pela divisão equilibrada do tempo de convívio dos pais com os filhos, conforme prescreve o § 2º do art. 1.583 do Código Civil. Foi ela o objeto de ambas as leis especiais que alteraram o dispositivo ora comentado.
3. Desenvolvimento histórico da guarda compartilhada. Na Inglaterra, até o século XIX, o pai tinha direito de propriedade sobre os filhos menores. A Revolução Industrial provocou profundas alterações no modo de organização das famílias: o distanciamento entre os locais de trabalho e de residência; a especialização das funções familiares; o reconhecimento do papel da mulher na sociedade e de sua importância no desenvolvimento da criança. Tais fatores levaram os tribunais ingleses a consagrar o princípio do best interest of child e a dar preferência às mães na atribuição da guarda dos filhos menores em caso de separação (FOLBERG, Jay, Custody & shared parenting, 2. ed. New York: The Guilford Press, 1991, p. 4).
A guarda compartilhada (joint custody, shared parenting, joint parenting, co-custody, concurrent custody, shared custody, co-parenting) foi também uma criação jurisprudencial que resultou do princípio da igualdade entre homem e mulher. Na segunda metade do século XX, o aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho implicou maior participação dos homens nos cuidados dos filhos e o consequente abrandamento da presunção de que conferir a guarda à mãe significa maior continuidade e estabilidade para os filhos. Estudos enfatizaram a importância da presença da figura paterna para o desenvolvimento da criança. Segundo EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE, os tribunais ingleses pretenderam alcançar o equilíbrio, inicialmente, com a atribuição ao pai de parte dos poderes que até então eram concentrados na mãe titular da guarda:
Como a guarda confere ao seu titular poderes muito amplos sobre a pessoa do filho, a perda deste direito do pai se revelou injusta e os Tribunais procuraram minorar os efeitos de não atribuição, através da split order (isto é, guarda compartilhada) que nada mais é, senão, um fracionamento do exercício do direito de guarda entre ambos os genitores. Enquanto a mãe se encarrega dos cuidados cotidianos da criança, care and control (isto é, “cuidado e controle”), ao pai retorna o poder de dirigir a vida do menor, custody (custódia). (Famílias monoparentais, 2. ed. São Paulo: RT, 2003, p. 265).
O mesmo autor informa que a guarda compartilhada foi determinada pela primeira vez, de forma inequívoca, no julgamento do Caso Clissold, em 1964, e foi adotada como padrão pela Court d’Appel, no julgamento do Caso Dipper v. Dipper, em 1980 (Op. cit., loc. cit.)
Nos Estados Unidos, uma lei da Carolina do Norte de 1957, sem utilizar o nome, autorizou a guarda compartilhada após o divórcio mediante a demonstração de que ela atenderia ao maior interesse da criança. Mais de 40 Estados norte-americanos regulamentaram o instituto. Na França, depois de ser adotada jurisprudencialmente, a guarda compartilhada (autorité parentale conjointe) foi regulada pela Lei n. 87-570 (Lei Malhuret), de 1987, e pela Lei n. 2002-305, de 4 de março de 2002, que modificaram os artigos 373 e seguintes do Código Civil [https://www.legifrance.gouv.fr/affichCode.do?idSectionTA=LEGISCTA000006165499&cidTexte=LEGITEXT000006070721&dateTexte=20180207], tornando-a padrão. No direito alemão, a redação original do Código Civil (BGB) estabelecia que em caso de divórcio a guarda fosse atribuída ao cônjuge que não houvesse sido responsabilizado por ele (§ 1.635); após as reformas de 1980 e de 1997, a separação conjugal não mais implica alteração da responsabilidade parental (Elterliche Sorge). Nos termos do § 1.671 do BGB, um dos pais somente pode excluir a responsabilidade parental do outro se houver mútuo consentimento, ressalvado ao filho maior de 14 anos o direito de manifestar discordância e impedir o acordo. Também pode haver a exclusão da responsabilidade parental se se demonstrar que é necessária ao maior interesse da criança (§ 1.671, BGB). [https://www.gesetze-im-internet.de/bgb/__1671.html] Na Itália, o affidamento condiviso foi introduzido pela Lei n. 54, de 2006, que o estabeleceu como padrão para pais separados, e foi modificado pelo Decreto Legislativo n. 154, de 28 de dezembro de 2013, que consolidou as alterações nos artigos 337 bis e seguintes do Código Civil [http://www.normattiva.it/uri-res/N2Ls?urn:nir:stato:regio.decreto:1942-03-16;262]. Em Portugal, a responsabilidade parental conjunta dos filhos de casais separados foi estabelecida como padrão segundo o art. 1.906º do Código Civil conforme a Lei n. 61/2008 [http://www.codigocivil.pt/].
Como se vê, o legislador brasileiro ao estabelecer com a Lei n. 11.698/2008 a possibilidade de implementação da guarda compartilhada e ao torná-la o padrão a ser adotado preferencialmente segundo o § 2º, do art. 1.584 do Código Civil, com a redação que lhe deu a Lei nº 13.058/2014, nada mais fez do que acompanhar um amplo movimento da cultura jurídica ocidental.
A rápida expansão do modelo o faz ser ainda alvo de resistências.
4. Argumentos favoráveis e contrários à guarda compartilhada. A guarda de filhos nas separações matrimoniais evoluiu historicamente de forma pendular: após milênios de supremacia patriarcal, seguiu-se a positivação de critérios que favoreceram a atribuição da guarda à mãe, até se chegar à guarda compartilhada, uma tentativa de equilíbrio de participação de pais separados na vida dos filhos.
O psicanalista SÉRGIO EDUARDO NICK sintetizou a crise do modelo tradicional de guarda, que leva ao afastamento de um dos pais:
Sabemos hoje que as visitas quinzenais típicas dos arranjos jurídicos quanto à guarda frequentemente têm efeito pernicioso sobre o relacionamento pais-filhos, uma vez que propicia um afastamento grande (tanto no sentido físico, como no emocional), devido a angústias frente aos encontros e separações, levando a um desinteresse defensivo de estabelecer contato com as crianças (Cowan, 1982; Dolto, 1989). A visitação regular é um fator significativo na explicação de padrões de ajustamento escolar positivo nas crianças após o divórcio (Pearson e Thoennes, 1990; Bisnaire, Firestone e Rynard, 1990). (NICK, Sérgio Eduardo. Guarda compartilhada: um novo enfoque no cuidado aos filhos de pais separados ou divorciados. In: A nova família: problemas e perspectivas. Vicente Barretto (org.), Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 127-168, espec. p. 131).
EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE enumerou estudos que afirmam a importância do compartilhamento da guarda para a preservação dos laços paterno-filiais e o equilíbrio emocional dos filhos:
São Wallerstein e Kelly que afirmam, pela primeira vez, que 2/3 (dois terços) das crianças entrevistadas oriundas de famílias monoparentais, lamentavam a ausência do genitor não-guardião (pai no caso); que existe uma correlação entre o estado de depressivo da criança e a ausência de contatos com o pai não-guardião; que a segurança, a confiança e a estabilidade da criança estão diretamente vinculadas à manutenção das relações pais-filhos. (...) Existe evidência em nossas descobertas que, na falta de previsão legal para participar das decisões sobre aspectos importantes da vida dos filhos, muitos pais sem custódia afastaram-se dos filhos com tristeza e frustração. Este afastamento foi sentido pelos filhos como rejeição e sobre eles teve um impacto prejudicial. (WALLERSTEIN, J. S. e KELLY, J. B. Surviving the breakup. How children and parents cope with divorce. New York: Basic Books, 1980, p. 311, apud LEITE, Eduardo de Oliveira. Famílias monoparentais, 2. ed. São Paulo: RT, 2003, p. 279)
(...)
Folberg e Graham, já haviam acentuado, no seu estudo, o caráter de cooperação provocado pela guarda conjunta. Segundo eles, “o vencedor tem direito a tudo nas decisões da custódia que tendem ao exacerbamento das diferenças paternas e causam disputas previsíveis no após divórcio, como pais tentando ter de volta a custódia (que lhes foi negada) e a última palavra”. E concluem os autores: “A obtenção da custódia conjunta cria motivação para uma maior cooperação porque o rompimento do acordo resultará, provavelmente, na obtenção de uma custódia única ao genitor que não provocou o fracasso”. (FOLBERG, H. J. e GRAHAM, M. Joint custody of children following divorce, 12v. of. C. Davis 523, 1979, p. 536-551 apud LEITE, Eduardo de Oliveira. Op. cit., p. 281).
No mesmo sentido, a conclusão de Dontigny: “As crianças vivendo uma guarda partilhada (entre o pai e a mãe) manifestam a mais elevada taxa de satisfação, o fato de permanecer em contato com os dois genitores se revelando a grande vantagem desta fórmula, enquanto as crianças vivendo uma guarda exclusiva (só com a mãe, ou só com o pai) se queixam da perda de contato com um ou com o outro de seus genitores” (DONTGNY, D. “Parents pour la vie”. In: Contact 20, 1988 apud LEITE, Eduardo de Oliveira Leite, op. cit., loc. cit.)
São duas as principais críticas à guarda compartilhada e nenhuma delas se opõe ao instituto como um todo, mas apenas a determinado modo de aplicação ou à sua aplicação em dada circunstância.
A primeira refere-se à insegurança e consequente mal-estar para o filho em razão de constantes alternâncias de domicílios. Esta crítica tem como alvo uma das formas de compartilhamento da guarda que é a alternada. A fim de se evitar esse risco, caso os pais não consigam conciliar de outro modo a questão, podem estabelecer uma residência habitual, como se infere do § 3º do artigo 1.583, ao prever, expressamente, que o filho terá uma cidade considerada “base de moradia”. Se houver desacordo, o juiz pode fixar a residência habitual e os períodos de convívio.
A segunda é contra a fixação em caso de litígio entre os pais. ROLF MADALENO afirma que a guarda compartilhada pressupõe consenso:
Não obstante as Leis 11.698/2008 e 13058/2014 facultem impor a guarda compartilhada jurídica e física, ainda assim é preciso reconhecer ser de fundamental relevância apurar a boa intenção e o espaço para diálogo dos pais, porque, em contrário, provavelmente uma guarda forçada por decreto judicial terminará ascendendo novos e indesejados conflitos que colocarão a criança e o adolescente no centro de um turbilhão de desentendimentos e no surgimento de subsequentes demandas que levarão à redução das prerrogativas conferidas aos pais, além de submeterem seus filhos a uma indesejada rotina de alternância do domicílio, em um movimento pendular. (MADALENO, Rolf. A lei da guarda compartilhada. In: Guarda compartilhada. Antônio Carlos Mathias Coltro; Mário Luiz Delgado (orgs.). 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 301-316, espec. p. 310).
Esta crítica é parcial, pois somente recusa o compartilhamento da guarda em situações de litígio. Ela estabelece presunção em desacordo com o § 2º do artigo 1.584 do Código Civil, que expressamente determina a fixação da guarda compartilhada quando as partes mantêm conflito em relação a ela. O Código Civil, por sua vez, está em consonância com a legislação estrangeira como visto. O Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou no sentido da adoção preferencial da guarda compartilhada:
1. A instituição da guarda compartilhada de filho não se sujeita à transigência dos genitores ou à existência de naturais desavenças entre cônjuges separados.
2. A guarda compartilhada é a regra no ordenamento jurídico brasileiro, conforme disposto no art. 1.584 do Código Civil, em face da redação estabelecida pelas Leis ns. 11.698/2008 e 13.058/2014, ressalvadas eventuais peculiaridades do caso concreto aptas a inviabilizar a sua implementação, porquanto às partes é concedida a possibilidade de demonstrar a existência de impedimento insuperável ao seu exercício, o que não ocorreu na hipótese dos autos.
(STJ. REsp. n. 1.591.161-SE, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva).
A recusa de aplicação do comando legal, em sua literalidade, deflui da dificuldade do intérprete em conceber um bom funcionamento do instituto em litígios o que é inteiramente possível.
5. Do exercício da guarda compartilhada. A maior polêmica em relação à guarda compartilhada diz respeito à sua utilização em casos litigiosos. A solução do problema está na própria compreensão do instituto, de sua finalidade e de suas raízes históricas.
A guarda compartilhada surgiu da utilização da conjugação dos princípios jurídicos da igualdade de gêneros e do maior interesse da criança, como meio de se evitar ou de se atenuar os danos frequentemente suportados por crianças e adolescentes decorrentes da guarda unilateral: a síndrome da alienação parental (SAP) – identificada por Richard Gardner, em 1985 – e o abandono afetivo.
O compartilhamento da guarda tem a função de assegurar a maior proteção dos interesses dos filhos menores mediante a igualdade entre o pai e a mãe na relação com a prole.
Assim, a guarda compartilhada é inspirada na ideia de se buscar no caso concreto a maximização da igualdade de gêneros visando ao bem-estar da criança e do adolescente. Ao contrário do que afirma a crítica à guarda compartilhada, não é a paz e a ausência de litígio entre as partes que a autorizam, mas a sua instituição que colabora para que esse ideal venha a ser buscado no exercício do poder familiar, como afirmou a Ministra NANCY ANDRIGHI em julgamento que consagrou a preferência que deve ser reconhecida ao instituto:
1. A guarda compartilhada busca a plena proteção do melhor interesse dos filhos, pois reflete, com muito mais acuidade, a realidade da organização social atual que caminha para o fim das rígidas divisões de papéis sociais definidas pelo gênero dos pais.
2. A guarda compartilhada é o ideal a ser buscado no exercício do Poder Familiar entre pais separados, mesmo que demandem deles reestruturações, concessões e adequações diversas, para que seus filhos possam usufruir, durante sua formação, do ideal psicológico de duplo referencial.
3. Apesar de a separação ou do divórcio usualmente coincidirem com o ápice do distanciamento do antigo casal e com a maior evidenciação das diferenças existentes, o melhor interesse do menor, ainda assim, dita a aplicação da guarda compartilhada como regra, mesmo na hipótese de ausência de consenso.
4. A inviabilidade da guarda compartilhada, por ausência de consenso, faria prevalecer o exercício de uma potestade inexistente por um dos pais. E diz-se inexistente, porque contrária ao escopo do Poder Familiar que existe para a proteção da prole.
5. A imposição judicial das atribuições de cada um dos pais, e o período de convivência da criança sob guarda compartilhada, quando não houver consenso, é medida extrema, porém necessária à implementação dessa nova visão, para que não se faça do texto legal, letra morta.
6. A guarda compartilhada deve ser tida como regra, e a custódia física conjunta - sempre que possível - como sua efetiva expressão.
(STJ. Recurso Especial n. 1.428.596-RS, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, j. 03/06/2014).
Como se vê, a guarda compartilhada surgiu para incentivar a responsabilidade parental e não como um possível fruto da harmonia de partes que vivem separadas. Ela visa a incentivar a colaboração, a cooperação. Quer romper a lógica concorrencial e beligerante que transforma os filhos em prêmio àquele que sofre a menor redução moral durante o processo. É um fomento, um incentivo à concórdia, embora possa existir sem ela.
A própria inovação terminológica colabora para que esse modelo de guarda contribua para a maior efetividade dos princípios da igualdade de gêneros e do maior interesse da criança. É da tradição do Direito de Família o abandono de certos termos quando se pretende evitar a carga ideológica negativa a eles associada. São numerosos os exemplos de tais substituições: desquite por separação judicial; pátrio poder por poder familiar, autoridade parental ou responsabilidade parental; homossexual por homoafetivo; concubinato por união estável, entre tantos outros. Do mesmo modo, a expressão guarda compartilhada induz uma superioridade ética em relação à expressão guarda unilateral.
A inovação vai além do léxico. Por ser “compartilhada”, a guarda não mais toca, separadamente, ao pai ou à mãe: ambos, mesmo separados, são guardiães. Não há, neste modelo a capitis diminutio, a perda da condição de guardião para o pai ou para a mãe, que durante décadas foi uma sanção ao responsável pela dissolução do casamento. Na guarda compartilhada, um dos pais somente não está, momentaneamente, na companhia dos filhos pela impossibilidade ou pela inconveniência de coabitação com o outro genitor. É notória e relevante a alteração do escopo, embora, fisicamente, a situação possa se assemelhar à da guarda unilateral.
Da permanência da guarda decorre sua incompatibilidade com o direito de visita (art. 1.589 do Código Civil); na guarda compartilhada os guardiães possuem tempo de convívio (§ 2º do art. 1.583, Código Civil). Neste ponto nota-se igualmente a superioridade do modelo. Pais, ordinariamente, não visitam filhos menores; pais não têm filhos em sua companhia. Pais vivem ou convivem com seus filhos, como, acertadamente, consta na literalidade da lei. Os períodos de convívio e a residência habitual dos filhos podem ser livres ou pré-fixados. Não há determinação legal de que sejam estabelecidos judicialmente. A omissão, no caso, é um silêncio eloquente da lei, que não apenas homenageia a autonomia privada dos pais e dos próprios filhos menores, como atende às dificuldades práticas de se regular judicialmente matéria pouco “justiciável”, ou seja, matéria para a qual os instrumentos estatais mostram-se frequentemente inadequados e ineficazes à satisfação das necessidades das partes em situações que se contam em horas, minutos, não têm turno, nem férias, nem feriados.
A fixação de períodos de convivência e da residência habitual tem lugar diante do interesse de qualquer das partes ou dos filhos menores, o que ocorre, ordinariamente, na presença de litígio. Os parâmetros não são os mesmos tradicionalmente adotados para a fixação do direito de visitas na guarda unilateral pois, como prevê o dispositivo, a divisão de tempo de convívio deve ser estabelecida “de forma equilibrada”. Equilibrada em matéria de guarda compartilhada é a divisão que assegura àquele que não seja o detentor da residência habitual tempo de convivência não inferior a 30% do tempo total dos filhos, o que se pode realizar mediante a concessão de um período maior de convívio com os filhos durante os finais de semana e nos períodos de férias. Se na guarda unilateral é comum que ao pai seja deferido o direito de visitas de 15 em 15 dias, o compartilhamento da guarda deve representar um aumento desse tempo de contato, com a convivência em dias da semana ou, nos fins de semana, de sexta a segunda-feira, ao invés da tradicional visita de sábado e domingo.
A compensação também pode ocorrer nos períodos de férias, assegurando-se àquele que não é o guardião titular da residência habitual um período de convivência maior com os filhos, de até dois terços do período das férias.
6. Residência habitual dos filhos. O § 3º do artigo 1.583 contém menos do que dele se infere. Na guarda compartilhada é comum, embora não seja necessário, a fixação de uma residência habitual para os filhos, mesmo quando ambos os pais residam na mesma cidade. De outro lado, a residência habitual dos filhos pode não ser a residência dos pais, como no caso de estudo em internatos, intercâmbios culturais, residência em lar de parente e situações semelhantes. Desse modo, a localização das residências dos pais deve ser levada em conta para efeito de fixação da residência habitual, podendo ser até mesmo em cidade diversa daquela em que tenham sido domiciliados os filhos. A mudança de domicílio dos filhos que implique mudança de município exige a anuência de ambos os pais detentores do poder familiar (art. 1.634, inciso V, do Código Civil), caso em que a recusa pode ser judicialmente suprida se for reputada injusta.
7. Direitos e deveres na guarda unilateral. Tradicionalmente, ao detentor do poder familiar destituído da guarda a lei conferia o direito de fiscalizar o exercício desta (art. 1.589 do Código Civil). A redação dada pela Lei n. 13.0158/2014 ao § 5º do art. 1.583 do Código Civil estabeleceu dever complementar ao direito de fiscalização: o dever de supervisão, que reforçou a responsabilidade parental do seu titular. Para tanto, conferiu-lhe poderes e legitimidade para exigir informações e prestação de contas. Esta última faculdade veio a corrigir entendimento jurisprudencial anterior, que repelia a possibilidade de o alimentante requerer prestação de contas do titular da guarda, sob a justificativa de suposta maior amplitude do direito de fiscalização, a exemplo do que decidiu em 2012 o Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n. 970.147-SP (Rel. Min. MARCO BUZZI, j. 4/09/2012). A incongruência é visível: como um direito supostamente maior, como é o de fiscalização, poderia não incluir um direito supostamente menor que seria o de exigir prestação de contas? A alteração legislativa, ao conferir ao pai ou à mãe não-guardião o direito de obter informações e prestação de contas deixou clara a possibilidade de manejo da ação de exigir contas prevista nos artigos 550 a 553 do Código de Processo Civil. (Comentário originalmente publicado em https://www.direitocom.com/codigo-civil-comentado/artigo-1583).


*Mestre e Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Procurador do Estado de Minas Gerais e advogado. 

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