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CAPÍTULO XI
DA PROTEÇÃO DA PESSOA DOS FILHOS1
Art. 1.583. A guarda será unilateral2 ou
compartilhada.3 (Redação dada pela Lei nº 11.698, de 2008).
§ 1º Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só
dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5º) e, por guarda
compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres
do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar
dos filhos comuns. (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).4
§ 2º Na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os
filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre
tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos: (Redação dada
pela Lei nº 13.058, de 2014) 5
I - (revogado); (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014)
II - (revogado); (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014)
III - (revogado). (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014)
§ 3º Na guarda compartilhada, a cidade considerada base de
moradia dos filhos será aquela que melhor atender aos interesses dos filhos.
(Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014)6
§ 4º (VETADO). (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).
§ 5º A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a
detenha a supervisionar os interesses dos filhos, e, para possibilitar tal
supervisão, qualquer dos genitores sempre será parte legítima para solicitar
informações e/ou prestação de contas, objetivas ou subjetivas, em assuntos ou
situações que direta ou indiretamente afetem a saúde física e psicológica e a
educação de seus filhos. (Incluído pela Lei nº 13.058, de 2014)7
Direito anterior: Art.
325 do Código Civil de 1916; art. 9º da Lei n. 6.515/77 (Lei do Divórcio). Na
redação original do Código Civil, o dispositivo consagrava o direito de os pais
decidirem sobre a guarda dos filhos quando a separação ou o divórcio fossem
consensuais; a Lei n. 11.698/2008 alterou o artigo, que passou a regular a
guarda unilateral e a compartilhada, introduzindo, pela primeira vez, previsão
sobre esta no direito brasileiro; a lei n. 13.058/2014, alterou os §§ 2º e 3º e
incluiu o § 5º com o escopo dar preferência à adoção da guarda compartilhada.
Referências normativas:
Maior interesse da criança: art. 227 da Constituição da República;
parentalidade responsável: art. 227, § 7º, da Constituição da República; igualdade
entre homens e mulheres: art. 5º, inciso I da Constituição da República;
igualdade dos cônjuges: art. 226, § 5º da Constituição da República; poder
familiar após o divórcio: art. 1.579 do Código Civil; poder familiar
independente do estado civil dos pais: art. 1.634 do Código Civil; poder
familiar após novas núpcias: art. 1.636 do Código Civil; direito de visitas:
art. 1.589 do Código Civil; direito de ter o filho em sua companhia: art. 1.632
do Código Civil; arts. 33 a 35 da Lei n. 8.069 (Estatuto da Criança e do
Adolescente); alienação parental: Lei n. 12.318/10; ação de exigir contas:
arts. 550 a 553 do Código de Processo Civil.
1. Da proteção da pessoa dos filhos. O título do capítulo é uma reminiscência do que dispunha o
Código Civil de 1916 a respeito da guarda dos filhos em decorrência do desquite
(separação judicial). Uma vez que a situação dos filhos em relação aos pais não
mais depende do estado civil destes, correto seria que todas as disposições
sobre guarda fossem reunidas no capítulo relativo ao poder familiar (arts.
1.630 a 1.638), pois a guarda dos filhos dele decorre.
2. Espécies de guarda.
Guarda é a função, isto é, um conjunto de direitos e de deveres, que a lei atribui
a uma pessoa capaz para zelar pelos interesses de um incapaz. A guarda dos
filhos pelos pais decorre do poder familiar.
Todas as possíveis combinações do
exercício da guarda de filhos relativamente aos pais ou a alguém que os substitua
foram classificadas pelo artigo 1.583 do Código Civil, com a redação que lhe
foi dada pela Lei n. 11.698/2008, em duas espécies: a guarda unilateral e a
compartilhada. A guarda compartilhada, em contraposição à unilateral, deveria
ser a que tem por titular mais de uma pessoa. O § 2º ressalvou, no entanto, que
nessa espécie de guarda os guardiães não vivem sob o mesmo teto. Desse modo,
extraem-se a partir deste dispositivo não duas, mas três espécies de guarda,
conforme a situação jurídica de seus titulares:
a) Unilateral (guarda dividida, sole custody): guarda exercida por
apenas um dos pais ou por terceiro que os substitua (§ 1º);
b) Compartilhada (joint custody): guarda atribuída simultaneamente a mais de uma
pessoa, que habitem em locais distintos (§ 1º, in fine);
c) Conjunta: guarda exercida por pais
que coabitam (art. 1.634, inciso II, Código Civil).
Assim, segundo a classificação legal
adotada pelo Código Civil, é espécie de guarda compartilhada a guarda alternada (divided custody), isto é, a atribuída a pessoas domiciliadas em
locais distintos, e que têm o filho menor, separadamente, por períodos iguais alternados.
No common
law, há dois tipos de guarda compartilhada:
a) Legal ou jurídica;
b) Física.
A guarda
compartilhada jurídica atribui a ambos os pais separados a responsabilidade
pelos direitos e deveres decorrentes do poder familiar. A manutenção dos
direitos e deveres decorrentes do poder familiar em caso de divórcio (art.
1.579 do Código Civil) ou de novas núpcias do titular do poder familiar (art.
1.636 do Código Civil) é da tradição do direito brasileiro. Vale dizer, no
Brasil, os direitos e deveres inerentes ao poder familiar decorrem deste e
pouco são tocados com a alteração da guarda. Com a vênia dos autores de uma das
melhores monografias sobre o tema (MADALENO, Rafael; MADALENO, Rolf. Guarda compartilhada: física e jurídica.
2. ed. São Paulo: RT, 2016, p. 173 e ss.), que sustentam posição contrária, ao
instituir a guarda compartilhada, a Lei n. 11.698/2008 não criou a guarda compartilhada jurídica, pois o
compartilhamento da responsabilidade parental sempre existiu na ordem jurídica pátria.
A guarda
compartilhada física, diferentemente, é a delineada pela divisão
equilibrada do tempo de convívio dos pais com os filhos, conforme prescreve o §
2º do art. 1.583 do Código Civil. Foi ela o objeto de ambas as leis especiais
que alteraram o dispositivo ora comentado.
3. Desenvolvimento histórico da guarda compartilhada. Na Inglaterra, até
o século XIX, o pai tinha direito de propriedade sobre os filhos menores. A
Revolução Industrial provocou profundas alterações no modo de organização das
famílias: o distanciamento entre os locais de trabalho e de residência; a especialização
das funções familiares; o reconhecimento do papel da mulher na sociedade e de
sua importância no desenvolvimento da criança. Tais fatores levaram os tribunais
ingleses a consagrar o princípio do best
interest of child e a dar preferência às mães na atribuição da guarda dos
filhos menores em caso de separação (FOLBERG, Jay, Custody & shared parenting, 2. ed. New York: The Guilford
Press, 1991, p. 4).
A guarda
compartilhada (joint custody, shared
parenting, joint parenting, co-custody, concurrent custody, shared custody,
co-parenting) foi também uma criação jurisprudencial que resultou do
princípio da igualdade entre homem e mulher. Na segunda metade do século XX, o
aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho implicou maior
participação dos homens nos cuidados dos filhos e o consequente abrandamento da
presunção de que conferir a guarda à mãe significa maior continuidade e
estabilidade para os filhos. Estudos enfatizaram a importância da presença da
figura paterna para o desenvolvimento da criança. Segundo EDUARDO DE OLIVEIRA
LEITE, os tribunais ingleses pretenderam alcançar o equilíbrio, inicialmente,
com a atribuição ao pai de parte dos poderes que até então eram concentrados na
mãe titular da guarda:
Como a guarda
confere ao seu titular poderes muito amplos sobre a pessoa do filho, a perda
deste direito do pai se revelou injusta e os Tribunais procuraram minorar os
efeitos de não atribuição, através da split
order (isto é, guarda compartilhada) que nada mais é, senão, um
fracionamento do exercício do direito de guarda entre ambos os genitores.
Enquanto a mãe se encarrega dos cuidados cotidianos da criança, care and control (isto é, “cuidado e
controle”), ao pai retorna o poder de dirigir a vida do menor, custody (custódia). (Famílias monoparentais, 2. ed. São
Paulo: RT, 2003, p. 265).
O mesmo autor informa
que a guarda compartilhada foi determinada pela primeira vez, de forma
inequívoca, no julgamento do Caso Clissold, em 1964, e foi adotada como padrão
pela Court d’Appel, no julgamento do
Caso Dipper v. Dipper, em 1980 (Op. cit., loc. cit.)
Nos Estados Unidos,
uma lei da Carolina do Norte de 1957, sem utilizar o nome, autorizou a guarda
compartilhada após o divórcio mediante a demonstração de que ela atenderia ao
maior interesse da criança. Mais de 40 Estados norte-americanos regulamentaram
o instituto. Na França, depois de ser adotada jurisprudencialmente, a guarda
compartilhada (autorité parentale
conjointe) foi regulada pela Lei n. 87-570 (Lei Malhuret), de 1987, e pela Lei n. 2002-305, de 4 de março de
2002, que modificaram os artigos 373 e seguintes do Código Civil
[https://www.legifrance.gouv.fr/affichCode.do?idSectionTA=LEGISCTA000006165499&cidTexte=LEGITEXT000006070721&dateTexte=20180207],
tornando-a padrão. No direito alemão, a redação original do Código Civil (BGB)
estabelecia que em caso de divórcio a guarda fosse atribuída ao cônjuge que não
houvesse sido responsabilizado por ele (§ 1.635); após as reformas de 1980 e de
1997, a separação conjugal não mais implica alteração da responsabilidade
parental (Elterliche Sorge). Nos termos
do § 1.671 do BGB, um dos pais somente pode excluir a responsabilidade parental
do outro se houver mútuo consentimento, ressalvado ao filho maior de 14 anos o
direito de manifestar discordância e impedir o acordo. Também pode haver a
exclusão da responsabilidade parental se se demonstrar que é necessária ao
maior interesse da criança (§ 1.671, BGB).
[https://www.gesetze-im-internet.de/bgb/__1671.html] Na Itália, o affidamento condiviso foi introduzido pela
Lei n. 54, de 2006, que o estabeleceu como padrão para pais separados, e foi
modificado pelo Decreto Legislativo n. 154, de 28 de dezembro de 2013, que
consolidou as alterações nos artigos 337 bis e seguintes do Código Civil
[http://www.normattiva.it/uri-res/N2Ls?urn:nir:stato:regio.decreto:1942-03-16;262].
Em Portugal, a responsabilidade parental conjunta dos filhos de casais
separados foi estabelecida como padrão segundo o art. 1.906º do Código Civil
conforme a Lei n. 61/2008 [http://www.codigocivil.pt/].
Como se vê, o
legislador brasileiro ao estabelecer com a Lei n. 11.698/2008 a possibilidade
de implementação da guarda compartilhada e ao torná-la o padrão a ser adotado
preferencialmente segundo o § 2º, do art. 1.584 do Código Civil, com a redação
que lhe deu a Lei nº 13.058/2014, nada mais fez do que acompanhar um amplo
movimento da cultura jurídica ocidental.
A rápida expansão
do modelo o faz ser ainda alvo de resistências.
4. Argumentos favoráveis e contrários à guarda
compartilhada.
A guarda de filhos nas separações matrimoniais evoluiu historicamente de forma
pendular: após milênios de supremacia patriarcal, seguiu-se a positivação de
critérios que favoreceram a atribuição da guarda à mãe, até se chegar à guarda
compartilhada, uma tentativa de equilíbrio de participação de pais separados na
vida dos filhos.
O psicanalista
SÉRGIO EDUARDO NICK sintetizou a crise do modelo tradicional de guarda, que
leva ao afastamento de um dos pais:
Sabemos hoje que as
visitas quinzenais típicas dos arranjos jurídicos quanto à guarda frequentemente
têm efeito pernicioso sobre o relacionamento pais-filhos, uma vez que propicia
um afastamento grande (tanto no sentido físico, como no emocional), devido a
angústias frente aos encontros e separações, levando a um desinteresse
defensivo de estabelecer contato com as crianças (Cowan, 1982; Dolto, 1989). A
visitação regular é um fator significativo na explicação de padrões de
ajustamento escolar positivo nas crianças após o divórcio (Pearson e Thoennes,
1990; Bisnaire, Firestone e Rynard, 1990). (NICK, Sérgio Eduardo. Guarda
compartilhada: um novo enfoque no cuidado aos filhos de pais separados ou
divorciados. In: A nova família:
problemas e perspectivas. Vicente Barretto (org.), Rio de Janeiro: Renovar,
1997, p. 127-168, espec. p. 131).
EDUARDO DE OLIVEIRA
LEITE enumerou estudos que afirmam a importância do compartilhamento da guarda
para a preservação dos laços paterno-filiais e o equilíbrio emocional dos
filhos:
São Wallerstein e
Kelly que afirmam, pela primeira vez, que 2/3 (dois terços) das crianças
entrevistadas oriundas de famílias monoparentais, lamentavam a ausência do
genitor não-guardião (pai no caso); que existe uma correlação entre o estado de
depressivo da criança e a ausência de contatos com o pai não-guardião; que a
segurança, a confiança e a estabilidade da criança estão diretamente vinculadas
à manutenção das relações pais-filhos. (...) Existe evidência em nossas
descobertas que, na falta de previsão legal para participar das decisões sobre
aspectos importantes da vida dos filhos, muitos pais sem custódia afastaram-se
dos filhos com tristeza e frustração. Este afastamento foi sentido pelos filhos
como rejeição e sobre eles teve um impacto prejudicial. (WALLERSTEIN, J. S. e
KELLY, J. B. Surviving the breakup. How
children and parents cope with divorce. New York: Basic Books, 1980, p.
311, apud LEITE, Eduardo de Oliveira. Famílias
monoparentais, 2. ed. São Paulo: RT, 2003, p. 279)
(...)
Folberg e Graham,
já haviam acentuado, no seu estudo, o caráter de cooperação provocado pela
guarda conjunta. Segundo eles, “o vencedor tem direito a tudo nas decisões da
custódia que tendem ao exacerbamento das diferenças paternas e causam disputas
previsíveis no após divórcio, como pais tentando ter de volta a custódia (que
lhes foi negada) e a última palavra”. E concluem os autores: “A obtenção da
custódia conjunta cria motivação para uma maior cooperação porque o rompimento
do acordo resultará, provavelmente, na obtenção de uma custódia única ao
genitor que não provocou o fracasso”. (FOLBERG, H. J. e GRAHAM, M. Joint custody of children following divorce,
12v. of. C. Davis 523, 1979, p. 536-551 apud LEITE, Eduardo de Oliveira. Op.
cit., p. 281).
No mesmo sentido, a
conclusão de Dontigny: “As crianças vivendo uma guarda partilhada (entre o pai
e a mãe) manifestam a mais elevada taxa de satisfação, o fato de permanecer em
contato com os dois genitores se revelando a grande vantagem desta fórmula,
enquanto as crianças vivendo uma guarda exclusiva (só com a mãe, ou só com o
pai) se queixam da perda de contato com um ou com o outro de seus genitores”
(DONTGNY, D. “Parents pour la vie”. In: Contact
20, 1988 apud LEITE, Eduardo de Oliveira Leite, op. cit., loc. cit.)
São duas as principais
críticas à guarda compartilhada e nenhuma delas se opõe ao instituto como um
todo, mas apenas a determinado modo de aplicação ou à sua aplicação em dada
circunstância.
A primeira
refere-se à insegurança e consequente mal-estar para o filho em razão de constantes
alternâncias de domicílios. Esta crítica tem como alvo uma das formas de
compartilhamento da guarda que é a alternada. A fim de se evitar esse risco,
caso os pais não consigam conciliar de outro modo a questão, podem estabelecer
uma residência habitual, como se infere do § 3º do artigo 1.583, ao prever,
expressamente, que o filho terá uma cidade considerada “base de moradia”. Se houver desacordo, o juiz pode fixar a
residência habitual e os períodos de convívio.
A segunda é contra
a fixação em caso de litígio entre os pais. ROLF MADALENO afirma que a guarda
compartilhada pressupõe consenso:
Não obstante as
Leis 11.698/2008 e 13058/2014 facultem impor a guarda compartilhada jurídica e
física, ainda assim é preciso reconhecer ser de fundamental relevância apurar a
boa intenção e o espaço para diálogo dos pais, porque, em contrário,
provavelmente uma guarda forçada por decreto judicial terminará ascendendo
novos e indesejados conflitos que colocarão a criança e o adolescente no centro
de um turbilhão de desentendimentos e no surgimento de subsequentes demandas
que levarão à redução das prerrogativas conferidas aos pais, além de submeterem
seus filhos a uma indesejada rotina de alternância do domicílio, em um
movimento pendular. (MADALENO, Rolf. A lei da guarda compartilhada. In: Guarda compartilhada. Antônio Carlos
Mathias Coltro; Mário Luiz Delgado (orgs.). 3. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2018, p. 301-316, espec. p. 310).
Esta crítica é
parcial, pois somente recusa o compartilhamento da guarda em situações de
litígio. Ela estabelece presunção em desacordo com o § 2º do artigo 1.584 do
Código Civil, que expressamente determina a fixação da guarda compartilhada
quando as partes mantêm conflito em relação a ela. O Código Civil, por sua vez,
está em consonância com a legislação estrangeira como visto. O Superior Tribunal
de Justiça já se pronunciou no sentido da adoção preferencial da guarda
compartilhada:
1. A instituição da
guarda compartilhada de filho não se sujeita à transigência dos genitores ou à
existência de naturais desavenças entre cônjuges separados.
2. A guarda
compartilhada é a regra no ordenamento jurídico brasileiro, conforme disposto
no art. 1.584 do Código Civil, em face da redação estabelecida pelas Leis ns.
11.698/2008 e 13.058/2014, ressalvadas eventuais peculiaridades do caso concreto
aptas a inviabilizar a sua implementação, porquanto às partes é concedida a
possibilidade de demonstrar a existência de impedimento insuperável ao seu
exercício, o que não ocorreu na hipótese dos autos.
(STJ. REsp. n.
1.591.161-SE, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva).
A recusa de
aplicação do comando legal, em sua literalidade, deflui da dificuldade do
intérprete em conceber um bom funcionamento do instituto em litígios o que é
inteiramente possível.
5. Do exercício da guarda compartilhada. A maior polêmica
em relação à guarda compartilhada diz respeito à sua utilização em casos
litigiosos. A solução do problema está na própria compreensão do instituto, de
sua finalidade e de suas raízes históricas.
A guarda
compartilhada surgiu da utilização da conjugação dos princípios jurídicos da
igualdade de gêneros e do maior interesse da criança, como meio de se evitar ou
de se atenuar os danos frequentemente suportados por crianças e adolescentes decorrentes
da guarda unilateral: a síndrome da alienação parental (SAP) – identificada por
Richard Gardner, em 1985 – e o abandono afetivo.
O compartilhamento
da guarda tem a função de assegurar a maior proteção dos interesses dos filhos
menores mediante a igualdade entre o pai e a mãe na relação com a prole.
Assim, a guarda
compartilhada é inspirada na ideia de se buscar no caso concreto a maximização
da igualdade de gêneros visando ao bem-estar da criança e do adolescente. Ao
contrário do que afirma a crítica à guarda compartilhada, não é a paz e a
ausência de litígio entre as partes que a autorizam, mas a sua instituição que colabora
para que esse ideal venha a ser buscado no exercício do poder familiar, como afirmou
a Ministra NANCY ANDRIGHI em julgamento que consagrou a preferência que deve
ser reconhecida ao instituto:
1. A guarda
compartilhada busca a plena proteção do melhor interesse dos filhos, pois
reflete, com muito mais acuidade, a realidade da organização social atual que
caminha para o fim das rígidas divisões de papéis sociais definidas pelo gênero
dos pais.
2. A guarda
compartilhada é o ideal a ser buscado no exercício do Poder Familiar entre pais
separados, mesmo que demandem deles reestruturações, concessões e adequações
diversas, para que seus filhos possam usufruir, durante sua formação, do ideal
psicológico de duplo referencial.
3. Apesar de a
separação ou do divórcio usualmente coincidirem com o ápice do distanciamento
do antigo casal e com a maior evidenciação das diferenças existentes, o melhor
interesse do menor, ainda assim, dita a aplicação da guarda compartilhada como
regra, mesmo na hipótese de ausência de consenso.
4. A inviabilidade
da guarda compartilhada, por ausência de consenso, faria prevalecer o exercício
de uma potestade inexistente por um dos pais. E diz-se inexistente, porque
contrária ao escopo do Poder Familiar que existe para a proteção da prole.
5. A imposição
judicial das atribuições de cada um dos pais, e o período de convivência da
criança sob guarda compartilhada, quando não houver consenso, é medida extrema,
porém necessária à implementação dessa nova visão, para que não se faça do
texto legal, letra morta.
6. A guarda
compartilhada deve ser tida como regra, e a custódia física conjunta - sempre
que possível - como sua efetiva expressão.
(STJ. Recurso
Especial n. 1.428.596-RS, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, j. 03/06/2014).
Como se vê, a
guarda compartilhada surgiu para incentivar a responsabilidade parental e não
como um possível fruto da harmonia de partes que vivem separadas. Ela visa a
incentivar a colaboração, a cooperação. Quer romper a lógica concorrencial e
beligerante que transforma os filhos em prêmio àquele que sofre a menor redução
moral durante o processo. É um fomento, um incentivo à concórdia, embora possa
existir sem ela.
A própria inovação
terminológica colabora para que esse modelo de guarda contribua para a maior
efetividade dos princípios da igualdade de gêneros e do maior interesse da
criança. É da tradição do Direito de Família o abandono de certos termos quando
se pretende evitar a carga ideológica negativa a eles associada. São numerosos
os exemplos de tais substituições: desquite
por separação judicial; pátrio poder por poder familiar, autoridade
parental ou responsabilidade parental;
homossexual por homoafetivo; concubinato
por união estável, entre tantos
outros. Do mesmo modo, a expressão guarda
compartilhada induz uma superioridade ética em relação à expressão guarda unilateral.
A inovação vai além
do léxico. Por ser “compartilhada”, a guarda não mais toca, separadamente, ao
pai ou à mãe: ambos, mesmo separados, são guardiães. Não há, neste modelo a capitis diminutio, a perda da condição
de guardião para o pai ou para a mãe, que durante décadas foi uma sanção ao
responsável pela dissolução do casamento. Na guarda compartilhada, um dos pais somente
não está, momentaneamente, na companhia dos filhos pela impossibilidade ou pela
inconveniência de coabitação com o outro genitor. É notória e relevante a alteração
do escopo, embora, fisicamente, a situação possa se assemelhar à da guarda
unilateral.
Da permanência da
guarda decorre sua incompatibilidade com o direito
de visita (art. 1.589 do Código Civil); na guarda compartilhada os
guardiães possuem tempo de convívio
(§ 2º do art. 1.583, Código Civil). Neste ponto nota-se igualmente a
superioridade do modelo. Pais, ordinariamente, não visitam filhos menores; pais não têm filhos em sua companhia. Pais vivem ou convivem com
seus filhos, como, acertadamente, consta na literalidade da lei. Os períodos de convívio e a residência habitual dos filhos podem ser
livres ou pré-fixados. Não há determinação legal de que sejam estabelecidos
judicialmente. A omissão, no caso, é um silêncio eloquente da lei, que não
apenas homenageia a autonomia privada dos pais e dos próprios filhos menores,
como atende às dificuldades práticas de se regular judicialmente matéria pouco
“justiciável”, ou seja, matéria para a qual os instrumentos estatais mostram-se
frequentemente inadequados e ineficazes à satisfação das necessidades das
partes em situações que se contam em horas, minutos, não têm turno, nem férias,
nem feriados.
A fixação de
períodos de convivência e da residência habitual tem lugar diante do interesse
de qualquer das partes ou dos filhos menores, o que ocorre, ordinariamente, na
presença de litígio. Os parâmetros não são os mesmos tradicionalmente adotados
para a fixação do direito de visitas na guarda unilateral pois, como prevê o
dispositivo, a divisão de tempo de convívio deve ser estabelecida “de forma equilibrada”. Equilibrada em
matéria de guarda compartilhada é a divisão que assegura àquele que não seja o
detentor da residência habitual tempo de convivência não inferior a 30% do
tempo total dos filhos, o que se pode realizar mediante a concessão de um
período maior de convívio com os filhos durante os finais de semana e nos
períodos de férias. Se na guarda unilateral é comum que ao pai seja deferido o
direito de visitas de 15 em 15 dias, o compartilhamento da guarda deve
representar um aumento desse tempo de contato, com a convivência em dias da
semana ou, nos fins de semana, de sexta a segunda-feira, ao invés da
tradicional visita de sábado e domingo.
A compensação
também pode ocorrer nos períodos de férias, assegurando-se àquele que não é o
guardião titular da residência habitual um período de convivência maior com os
filhos, de até dois terços do período das férias.
6. Residência habitual dos filhos. O § 3º do artigo
1.583 contém menos do que dele se infere. Na guarda compartilhada é comum,
embora não seja necessário, a fixação de uma residência habitual para os
filhos, mesmo quando ambos os pais residam na mesma cidade. De outro lado, a
residência habitual dos filhos pode não ser a residência dos pais, como no caso
de estudo em internatos, intercâmbios culturais, residência em lar de parente e
situações semelhantes. Desse modo, a localização das residências dos pais deve
ser levada em conta para efeito de fixação da residência habitual, podendo ser
até mesmo em cidade diversa daquela em que tenham sido domiciliados os filhos. A
mudança de domicílio dos filhos que implique mudança de município exige a
anuência de ambos os pais detentores do poder familiar (art. 1.634, inciso V,
do Código Civil), caso em que a recusa pode ser judicialmente suprida se for
reputada injusta.
7. Direitos e deveres na guarda unilateral. Tradicionalmente,
ao detentor do poder familiar destituído da guarda a lei conferia o direito de fiscalizar
o exercício desta (art. 1.589 do Código Civil). A redação dada pela Lei n.
13.0158/2014 ao § 5º do art. 1.583 do Código Civil estabeleceu dever
complementar ao direito de fiscalização: o dever de supervisão, que reforçou a
responsabilidade parental do seu titular. Para tanto, conferiu-lhe poderes e
legitimidade para exigir informações e prestação de contas. Esta última
faculdade veio a corrigir entendimento jurisprudencial anterior, que repelia a
possibilidade de o alimentante requerer prestação de contas do titular da guarda,
sob a justificativa de suposta maior amplitude do direito de fiscalização, a
exemplo do que decidiu em 2012 o Superior Tribunal de Justiça no Recurso
Especial n. 970.147-SP (Rel. Min. MARCO BUZZI, j. 4/09/2012). A incongruência é
visível: como um direito supostamente maior, como é o de fiscalização, poderia
não incluir um direito supostamente menor que seria o de exigir prestação de
contas? A alteração legislativa, ao conferir ao pai ou à mãe não-guardião o
direito de obter informações e prestação de contas deixou clara a possibilidade
de manejo da ação de exigir contas prevista nos artigos 550 a 553 do Código de
Processo Civil. (Comentário originalmente publicado em https://www.direitocom.com/codigo-civil-comentado/artigo-1583).
*Mestre e Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito
da Universidade Federal de Minas Gerais, Procurador do Estado de Minas Gerais e
advogado.
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