A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
(STJ) tem caminhado para desestimular e combater quaisquer práticas ofensivas à
dignidade sexual de crianças e adolescentes, responsabilizando penalmente os
autores de delitos sexuais.
Recentes
julgados interpretam de forma bastante abrangente a expressão “praticar outro
ato libidinoso com menor de 14 anos” para caracterizar a consumação do crime
denominado estupro de vulnerável, previsto no artigo 217-A, caput, do Código
Penal (CP).
O STJ entende, de
forma pacífica, que para a configuração do estupro de vulnerável basta
que a intenção do agente seja a satisfação sexual e que estejam presentes os
elementos previstos naquele dispositivo.
Para o
ministro Gurgel de Faria, isso significa que o delito se consuma “com a prática
de qualquer ato de libidinagem ofensivo à dignidade sexual da vítima, incluindo
toda ação atentatória contra o pudor praticada com o propósito lascivo, seja
sucedâneo da conjunção carnal ou não”.
Contato
físico
Ao fazer
considerações acerca da caraterização do ato libidinoso referido nos artigos 213 e 217-A do CP, o professor
de direito penal Rogério Sanches Cunha mencionou que a maioria da doutrina
orienta que não há necessidade de contato físico entre o autor e a vítima,
“cometendo o crime o agente que, para satisfazer a sua lascívia, ordena que a
vítima explore seu próprio corpo (masturbando-se), somente para contemplação” (Manual
de Direito Penal: Parte Especial, 8ª edição).
Seguindo
essa linha de pensamento, em julgamento de agosto deste ano, a Quinta Turma
considerou ser dispensável qualquer tipo de contato físico para caracterizar o
delito de estupro de vulnerável. No caso analisado pelo colegiado, uma criança
de dez anos foi levada a motel e, mediante pagamento, induzida a tirar a roupa
na frente de um homem.
Em
concordância com o voto do relator, ministro Joel Ilan Paciornik, o colegiado
considerou que “a dignidade sexual não se ofende somente com lesões de natureza
física”, sendo, portanto, “irrelevante que haja contato físico entre ofensor e
ofendido para a consumação do crime”.
Presunção de
violência
Em agosto de
2015, a Terceira Seção, em julgamento de recurso representativo de
controvérsia, sedimentou jurisprudência pela presunção absoluta da violência em
casos da prática de conjunção carnal ou de ato libidinoso diverso com pessoa
menor de 14 anos. Naquela época, já havia vários julgados no sentido de que o
consentimento da vítima, a ausência de violência real e de grave ameaça não
bastam para absolver o acusado.
De acordo
com o relator do repetitivo, ministro Rogerio Schietti Cruz, os fundamentos
utilizados pelo tribunal de segundo grau para absolver o acusado seguiram um
padrão de comportamento “patriarcal e sexista”, comumente observado em
processos por crimes dessa natureza, “nos quais o julgamento recai inicialmente
sobre a vítima da ação delitiva, para, somente a partir daí, julgar-se o réu”.
Ao proferir
seu voto, o ministro fez uma reflexão sobre a história das ideias penais e das
opções de política criminal que deram origem às sucessivas normatizações do
direito penal brasileiro. Com base nesse estudo, ele concluiu que “não mais se
tolera a provocada e precoce iniciação sexual de crianças e adolescentes por
adultos que se valem da imaturidade da pessoa ainda em formação física e
psíquica para satisfazer seus desejos sexuais”.
Ele se
mostrou otimista ao afirmar que evoluímos, pouco a pouco, “de um Estado ausente
e de um direito penal indiferente à proteção da dignidade sexual de crianças e
adolescentes para uma política social e criminal de redobrada preocupação com o
saudável crescimento físico, mental e emocional do componente infanto-juvenil
de nossa população”. Preocupação que, em seu entendimento, passou a ser
compartilhada entre o Estado, a sociedade e a família, “com inúmeros reflexos
na dogmática penal”.
Contravenção
penal
O ato de
passar a mão por cima da roupa de menor, nos seios e nas pernas, e de deixar o
órgão genital à mostra é suficiente para condenar alguém à pena de 8 a 15 anos
de reclusão. Essa foi a conclusão da Quinta Turma, em julgamento deste mês. Os
ministros, em decisão unânime, afastaram a desclassificação do crime de estupro
de vulnerável para a contravenção penal prevista no artigo 65 do Decreto-Lei 3.688/41.
Na ocasião,
o ministro Felix Fischer explicou a diferença entre o crime de estupro de vulnerável
e a contravenção penal que foi aplicada ao caso pelo juízo de primeiro grau e
mantida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
Na
contravenção do artigo 65, disse o ministro, o direito protegido é a
tranquilidade pessoal, violada por atos que, embora reprováveis, não são
considerados graves. Nesse caso, ele explicou que o objetivo do agente é
aborrecer, atormentar, irritar.
“O estupro
de vulnerável, por sua vez, é mais abrangente; visa o resguardo, em sentido
amplo, da integridade moral e sexual dos menores de 14 anos, cuja capacidade de
discernimento, no que diz respeito ao exercício de sua sexualidade, é
reduzida”, afirmou Fischer. Para ele, a conduta de que trata esse tipo penal
evidencia um comportamento de natureza grave.
Desclassificação
Precedente
semelhante da Sexta Turma também refutou a desclassificação do crime de estupro
de vulnerável para a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor,
prevista no artigo 61 da Lei de Contravenções
Penais. No caso, um professor foi condenado em primeira instância a 39 anos de
reclusão porque teria apertado a genitália de quatro alunas, com oito e nove
anos de idade, dentro da sala de aula.
Por considerar
os atos do professor como de menor gravidade, o Tribunal de Justiça de Sergipe
afastou a condenação sob o fundamento de que as “ações se deram sobre a roupa e
de forma ligeira, não havendo prova de qualquer contato físico direto, nem a
prática de outro ato mais grave”.
Contudo, em
concordância com a sentença, o STJ deu provimento ao recurso especial do
Ministério Público estadual para condenar o acusado como incurso no artigo
217-A do CP.
“Efetivamente,
considerar como ato libidinoso diverso da conjunção carnal somente as hipóteses
em que há introdução do membro viril nas cavidades oral ou anal da vítima não
corresponde ao entendimento do legislador, tampouco ao da doutrina e da
jurisprudência acerca do tema”, defendeu o ministro Rogerio Schietti, relator.
Proteção
integral
Schietti
ressaltou a proteção integral à criança e ao adolescente ao mencionar o artigo
34, inciso “b”, da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança,
aprovada pela Resolução 44/25 da Assembleia Geral das Nações Unidas, que foi
internalizada no ordenamento jurídico nacional.
De acordo
com o texto, os Estados se comprometem a proteger a criança contra todas as formas
de abuso sexual e, para isso, tomarão todas as medidas de caráter nacional,
bilateral e multilateral que sejam necessárias para impedir sua exploração na
prostituição ou em outras práticas sexuais ilegais.
Os números
dos processos não são divulgados em razão de segredo judicial.
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