Por maioria de votos, o
Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) fixou a tese de repercussão geral no
Recurso Extraordinário (RE) 898060, julgado na sessão de quarta-feira (21), no
qual ficou definido que a existência paternidade socioafetiva não exime de
responsabilidade o pai biológico. A tese fixada servirá de parâmetro para
futuros casos semelhantes e para 35 processos sobre o tema que estão
sobrestados (suspensos) nos demais tribunais.
A tese fixada
estabelece que: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro
público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante
baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios". Ficaram
vencidos os ministros Dias Toffoli e Marco Aurélio, que divergiram parcialmente
do texto fixado.
Em sessão na quarta-feira (21), o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que a
existência de paternidade socioafetiva não exime de responsabilidade o pai
biológico. Por maioria de votos, os ministros negaram provimento ao Recurso
Extraordinário (RE) 898060, com repercussão geral reconhecida, em que um pai
biológico recorria contra acórdão que estabeleceu sua paternidade, com
efeitos patrimoniais, independentemente do vínculo com o pai socioafetivo.
Relator
O relator do RE 898060,
ministro Luiz Fux, considerou que o princípio da paternidade responsável
impõe que, tanto vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os
envolvidos, quanto aqueles originados da ascendência biológica, devem ser
acolhidos pela legislação. Segundo ele, não há impedimento do reconhecimento
simultâneo de ambas as formas de paternidade – socioafetiva ou biológica –,
desde que este seja o interesse do filho. Para o ministro, o reconhecimento
pelo ordenamento jurídico de modelos familiares diversos da concepção
tradicional, não autoriza decidir entre a filiação afetiva e a biológica quando
o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos os
vínculos.
“Do contrário,
estar-se-ia transformando o ser humano em mero instrumento de aplicação dos
esquadros determinados pelos legisladores. É o direito que deve servir à
pessoa, não o contrário”, salientou o ministro em seu voto (leia a íntegra).
O relator destacou que,
no Código Civil de 1916, o conceito de família era centrado no instituto do
casamento com a "distinção odiosa” entre filhos legítimos, legitimados e
ilegítimos, com a filiação sendo baseada na rígida presunção de paternidade do
marido. Segundo ele, o paradigma não era o afeto entre familiares ou a origem
biológica, mas apenas a centralidade do casamento. Porém, com a evolução no
campo das relações de familiares, e a aceitação de novas formas de união, o
eixo central da disciplina da filiação se deslocou do Código Civil para a
Constituição Federal.
“A partir da Carta de
1988, exige-se uma inversão de finalidades no campo civilístico: o regramento
legal passa a ter de se adequar às peculiaridades e demandas dos variados
relacionamentos interpessoais, em vez de impor uma moldura estática baseada no
casamento entre homem e mulher”, argumenta o relator.
No caso concreto, o relator
negou provimento ao recurso e propôs a fixação da seguinte tese de repercussão
geral: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não
impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem
biológica, salvo nos casos de aferição judicial do abandono afetivo voluntário
e inescusável dos filhos em relação aos pais”.
Partes
Da tribuna, a
representante do pai biológico sustentou que a preponderância da paternidade
socioafetiva sobre a biológica não representa fuga de responsabilidade, mas sim
impede que a conveniência de um indivíduo, seja o filho ou o pai, opte pelo
reconhecimento ou não da paternidade apenas em razão de possíveis efeitos
materiais que seriam gerados. Defendeu que fosse mantido apenas
vínculo biológico sem reconhecimento da paternidade, portanto, sem efeitos
patrimoniais, pois a própria filha afirmou que não pretendia desfazer os
vínculos com o pai socioafetivo.
Atuando na ação na
qualidade de amicus curiae (amigo da corte), o Instituto
Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) sustentou que a igualdade de filiação
– a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos – deixou de existir com a
Constituição de 1988. O instituto defende que as paternidades, socioafetiva e
biológica, sejam reconhecidas como jurídicas em condições de igualdade
material, sem hierarquia, em princípio, nos casos em que ambas apresentem
vínculos socioafetivos relevantes. Considera, ainda, que o reconhecimento
jurídico da parentalidade socioafetiva, consolidada na convivência familiar
duradoura, não pode ser impugnada com fundamento exclusivo na origem biológica.
O procurador-geral da
República, Rodrigo Janot, se manifestou no sentido de que não é possível fixar
em abstrato a prevalência entre a paternidade biológica e a socioafetiva, pois
os princípios do melhor interesse da criança e da autodeterminação do sujeito
reclamam a referência a dados concretos acerca de qual vínculo deve prevalecer.
No entendimento do procurador-geral, é possível ao filho obter, a qualquer
tempo, o reconhecimento da paternidade biológica, com todos os consectários
legais. Considera, ainda, que é possível o reconhecimento jurídico da
existência de mais de um vínculo parental em relação a um mesmo sujeito, pois a
Constituição não admite restrições injustificadas à proteção dos diversos
modelos familiares. Segundo ele, a análise deve ser realizada em cada caso
concreto para verificar se estão presentes elementos para a coexistência dos
vínculos ou para a prevalência de um deles.
Votos
O ministro Luiz Fux (relator),
ao negar provimento ao recurso extraordinário, foi seguido pela maioria dos
ministros: Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso
de Mello e a presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia. De acordo com a
ministra Rosa Weber, há possibilidade de existência de paternidade socioafetiva
e paternidade biológica, com a produção de efeitos jurídicos por ambas. Na
mesma linha, o ministro Ricardo Lewandowski reconheceu ser possível a dupla
paternidade, isto é, paternidade biológica e afetiva concomitantemente, não
sendo necessária a exclusividade de uma delas.
O ministro Dias Toffoli
salientou o direito ao amor, o qual está relacionado com as obrigações legais
do pai biológico para com o filho, a exemplo da alimentação, educação e moradia.
“Se teve o filho, tem obrigação, ainda que filho tenha sido criado por
outra pessoa”, observou. Ao acompanhar o relator, o ministro Gilmar Mendes
afirmou que a tese sustentada pelo recorrente [pai biológico] apresenta
“cinismo manifesto”. “A ideia de paternidade responsável precisa ser levada em
conta, sob pena de estarmos estimulando aquilo que é corrente porque estamos a
julgar um recurso com repercussão geral reconhecida”, avaliou.
O ministro Marco
Aurélio, que também seguiu a maioria dos votos, destacou que o direito de
conhecer o pai biológico é um direito natural. Para ele, a filha tem direito à
alteração no registro de nascimento, com as consequências necessárias. Entre
outros aspectos, o ministro Celso de Mello considerou o direito fundamental da
busca da felicidade e a paternidade responsável, a fim de acolher as razões
apresentadas no voto do relator. Ele observou que o objetivo da República é o
de promover o bem de todos sem qualquer preconceito de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação.
A presidente da Corte,
ministra Cármen Lúcia destacou que “amor não se impõe, mas cuidado sim e esse
cuidado me parece ser do quadro de direitos que são assegurados, especialmente
no caso de paternidade e maternidade responsável”.
Divergências
O ministro Edson Fachin
abriu a divergência e votou pelo parcial provimento do recurso, ao entender que
o vínculo socioafetivo “é o que se impõe juridicamente” no caso dos autos,
tendo em vista que existe vínculo socioafetivo com um pai e vínculo biológico
com o genitor. Portanto, para ele, há diferença entre o ascendente genético
(genitor) e o pai, ao ressaltar que a realidade do parentesco não se confunde
exclusivamente com a questão biológica. “O vínculo biológico, com efeito, pode ser
hábil, por si só, a determinar o parentesco jurídico, desde que na falta de uma
dimensão relacional que a ele se sobreponha, e é o caso, no meu modo de ver,
que estamos a examinar”, disse, ao destacar a inseminação artificial heteróloga
[doador é terceiro que não o marido da mãe] e a adoção como exemplos em
que o vínculo biológico não prevalece, “não se sobrepondo nem coexistindo com
outros critérios”.
Também divergiu do
relator o ministro Teori Zavascki. Para ele, a paternidade biológica não gera
necessariamente a relação de paternidade do ponto de vista jurídico e com as
consequências decorrentes. “No caso há uma paternidade socioafetiva que
persistiu, persiste e deve ser preservada”, afirmou. Ele observou ser difícil
estabelecer uma regra geral e que deveriam ser consideradas situações
concretas.
A tese de repercussão
geral, que servirá de parâmetro para casos semelhantes em trâmite na justiça em
todo o país, deve ser fixada pela Corte na sessão plenária desta quinta-feira
(22).