segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

AGIR ÉTICO E DIREITO - Artigo


Maria de Fátima Freire de Sá*










Um brocardo latino afirma que onde está a sociedade, está o direito (Ubi societas, ibi ius). Significa dizer que não existe sociedade sem normas que a discipline. E normas jurídicas, quando descumpridas, trazem como consequência uma sanção.

Mas, não seria melhor que as pessoas cumprissem seus deveres muito mais por uma conduta moral do que por imposição de coerção feita pelo direito? João Baptista Villela,  professor mineiro muito querido certa vez disse que “o homem só é feliz à condição de ser livre. Só é livre se responsável. E só é responsável se os motivos de sua conduta estão dentro e não fora dele”. Ou seja, é o homem que deveria responder à sociedade e não uma imposição de responsabilidade por parte da sociedade ao homem. E, para tanto, o cumprimento de deveres adviria muito mais por uma força interna do que por emprego de sanção, imposta pelo direito.

Vale sonhar com uma sociedade ideal... Mas, em tempos de pós-verdade, isso passa a ser total ilusão: muitos se furtam à adesão da prática (ou abstenção) de atos que reconheçam iguais liberdades fundamentais, não importando com sanções internas ou externas. Aqui, um pequeno esclarecimento. Pós-verdade é tradução de “post-truth”, palavra eleita em 2016 pela Universidade de Oxford. Trata-se de adjetivo que avalia que a verdade vem perdendo importância para boatos. A palavra foi ambientada para debates políticos, mas pode ser estendida para outros aspectos da vida.

A veiculação de notícias nessa era da informação, sejam elas verdadeiras ou falsas, podem acarretar danos às pessoas por lhes ferir a dignidade. O exemplo a ser dado, porque amplamente noticiado, foi a divulgação de exames da ex-primeira dama, dona Marisa Letícia, nas redes sociais. E um fato agravante é que isso foi feito por profissionais dos hospitais em que se encontrava a paciente; primeiro em São Bernardo do Campo e depois em São Paulo. A conduta dos médicos foi motivo de abertura de sindicâncias pelos hospitais e também junto ao Órgão de classe, por desrespeito às normas deontológicas do Conselho Federal de Medicina quais sejam, guardar sigilo profissional (arts. 73 a 79) e ferir a dignidade de paciente, com discriminação e comentários desonrosos (art. 23). No último caso, em razão das conversas entre médicos em grupos de whatsapp.

A intenção, aqui, não é maldizer ou depreciar a classe médica, mas de trazer ao debate a importância do aprendizado da ética nos cursos superiores. A medicina está no centro desse artigo pelas razões apontadas acima. No livro Mortais, Atul Gawande afirma que aprendeu muito na faculdade de medicina, mas que a mortalidade não foi uma delas. Tampouco os livros didáticos continham apontamentos mais aprofundados sobre o envelhecimento, a fragilidade ou a morte. O mesmo foi escrito pela médica Ana Cláudia Quintana Arantes, que trabalha com cuidados paliativos. Segundo ela, aprende-se sobre doenças, mas muito pouco sobre empatia e compaixão. 
   
Esse cenário é agravado pelos discursos polarizados (de ódio) instaurados na sociedade civil que parece esquecer-se de valores que impulsionam as condutas e o cumprimento de deveres morais. Na falta deles, o direito regula as condutas jurídicas. A proteção da vida privada é garantida pelo inciso X do art. 5º da Constituição Federal e também pelo art. 21 do Código Civil que dispõe que a vida privada da pessoa natural é inviolável e, em caso de desrespeito, o juiz deverá adotar as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma. O exercício do direito da personalidade à vida privada se faz, tanto por um exercício positivo, consistente na livre condução da própria vida, a partir do compartilhamento de ideias e pensamentos, quanto por um exercício negativo, que se revela pelo direito ao recolhimento, a se manter em segredo, de não revelar informações pessoais.

         Infelizmente, com o avanço tecnológico, os atentados à vida privada, inclusive por meio da internet, tornaram-se muito comuns. Resta acreditar na altivez da espécie para que o exercício da liberdade se dê com responsabilidade e consciência.

* Doutora e Mestre em Direito. Professora da PUCMinas. Pesquisadora do CEBID. Advogada e parecerista.
        

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