Maria de Fátima Freire de Sá* |
Um brocardo latino
afirma que onde está a sociedade, está o direito (Ubi societas, ibi ius). Significa dizer que não existe sociedade
sem normas que a discipline. E normas jurídicas, quando descumpridas, trazem
como consequência uma sanção.
Mas, não seria melhor
que as pessoas cumprissem seus deveres muito mais por uma conduta moral do que
por imposição de coerção feita pelo direito? João Baptista Villela, professor mineiro muito querido certa vez
disse que “o homem só é feliz à condição de ser livre. Só é livre se
responsável. E só é responsável se os motivos de sua conduta estão dentro e não
fora dele”. Ou seja, é o homem que deveria responder à sociedade e não uma
imposição de responsabilidade por parte da sociedade ao homem. E, para tanto, o
cumprimento de deveres adviria muito mais por uma força interna do que por
emprego de sanção, imposta pelo direito.
Vale sonhar com uma
sociedade ideal... Mas, em tempos de pós-verdade,
isso passa a ser total ilusão: muitos se furtam à adesão da prática (ou
abstenção) de atos que reconheçam iguais liberdades fundamentais, não
importando com sanções internas ou externas. Aqui, um pequeno esclarecimento.
Pós-verdade é tradução de “post-truth”, palavra eleita em 2016 pela
Universidade de Oxford. Trata-se de adjetivo que avalia que a verdade vem
perdendo importância para boatos. A palavra foi ambientada para debates
políticos, mas pode ser estendida para outros aspectos da vida.
A veiculação de notícias
nessa era da informação, sejam elas verdadeiras ou falsas, podem acarretar
danos às pessoas por lhes ferir a dignidade. O exemplo a ser dado, porque
amplamente noticiado, foi a divulgação de exames da ex-primeira dama, dona
Marisa Letícia, nas redes sociais. E um fato agravante é que isso foi feito por
profissionais dos hospitais em que se encontrava a paciente; primeiro em São
Bernardo do Campo e depois em São Paulo. A conduta dos médicos foi motivo de
abertura de sindicâncias pelos hospitais e também junto ao Órgão de classe, por
desrespeito às normas deontológicas do Conselho Federal de Medicina quais
sejam, guardar sigilo profissional (arts. 73 a 79) e ferir a dignidade de
paciente, com discriminação e comentários desonrosos (art. 23). No último caso,
em razão das conversas entre médicos em grupos de whatsapp.
A intenção, aqui, não é
maldizer ou depreciar a classe médica, mas de trazer ao debate a importância do
aprendizado da ética nos cursos superiores. A medicina está no centro desse
artigo pelas razões apontadas acima. No livro Mortais, Atul Gawande afirma que
aprendeu muito na faculdade de medicina, mas que a mortalidade não foi uma
delas. Tampouco os livros didáticos continham apontamentos mais aprofundados
sobre o envelhecimento, a fragilidade ou a morte. O mesmo foi escrito pela
médica Ana Cláudia Quintana Arantes, que trabalha com cuidados paliativos.
Segundo ela, aprende-se sobre doenças, mas muito pouco sobre empatia e compaixão.
Esse cenário é agravado
pelos discursos polarizados (de ódio) instaurados na sociedade civil que parece
esquecer-se de valores que impulsionam as condutas e o cumprimento de deveres
morais. Na falta deles, o direito regula as condutas jurídicas. A proteção da
vida privada é garantida pelo inciso X do art. 5º da Constituição Federal e
também pelo art. 21 do Código Civil que dispõe que a vida privada da pessoa
natural é inviolável e, em caso de desrespeito, o juiz deverá adotar as
providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta
norma. O exercício do direito da personalidade à vida privada se faz, tanto por
um exercício positivo, consistente na livre condução da própria vida, a partir
do compartilhamento de ideias e pensamentos, quanto por um exercício negativo,
que se revela pelo direito ao recolhimento, a se manter em segredo, de não
revelar informações pessoais.
Infelizmente,
com o avanço tecnológico, os atentados à vida privada, inclusive por meio da internet,
tornaram-se muito comuns. Resta acreditar na altivez da espécie para que o
exercício da liberdade se dê com responsabilidade e consciência.
* Doutora
e Mestre em Direito. Professora da PUCMinas. Pesquisadora do CEBID. Advogada e
parecerista.
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