quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Entre a tribuna, a pintura e o teto

Na sala de julgamento todas as cadeiras estavam tomadas. Sobrou uma em frente à entrada da tribuna. Logo descobri porque estava vaga, dela nada se vê além da tribuna, do teto, por sinal, belo (sobre esta sala escreveu Ricardo Arnaldo Malheiros Fiúza:

(...) É, sem dúvida, um dos salões públicos mais bonitos do Brasil. Maravilhoso é o impacto causado pela iluminação dos lustres de cristal da Bohemia sobre a tapeçaria vermelha, as cortinas douradas e as duas alas de cadeiras originais, trabalhadas pelas mãos hábeis do marceneiro Piancastelli, grande artesão do início do Século XX, em Belo Horizonte. (...)
Nesse salão, merecem ainda destaque: os bustos dos notáveis juristas Lafayette e Teixeira de Freitas; o velho relógio de parede Auschin Clock, que marca as horas desde Ouro Preto; um belo crucifixo, vindo de Mariana, conjugando em si o entalhe do marceneiro Mesquita, na bela cruz, e o cinzel de Fábio na pedra-sabão da imagem de Cristo.
No alto das paredes, cartelas de gesso artisticamente trabalhados trazem os nomes de grandes juristas brasileiros. Só dois não são mineiros: Clóvis e Ruy... (PALÁCIO DA JUSTIÇA: 100 ANOS DE ARQUITETURA E HISTÓRIA, Revista da Amagis). 


Foto: TJMG
E da gigantesca pintura parietal. Entre a tribuna, a pintura e o teto passei longas horas ouvindo a presidente e aguardando a vez de falar. Sem ver a desembargadora que dirigia a sessão era até possível imaginar que aquela voz vinha da moça da pintura, a encarnação da Justiça, que virou selo comemorativo em 2009.


Na parede principal domina o salão a bela figura da Justiça, pintada em 1920 por J. Bescaal. Mulher bonita, sem a venda nos olhos (para tudo ver...). Há “controvérsias” sobre qual a bela mulher que teria servido de modelo para o pintor.. A moldura em madeira maciça, encimada pelo brasão de Minas, causa impressão aos visitantes.(PALÁCIO DA JUSTIÇA: 100 ANOS DE ARQUITETURA E HISTÓRIA, Revista da Amagis).
            
Tudo que aconteceu naquela sessão já havia acontecido em tantas outras. Uma advogada nova que sustenta na tribuna e ouve a relatora dizer que o processo em julgamento é sobre outra matéria. Todos os presentes fazem cara de paisagem, como se nada estivesse acontecendo.

Um advogado de fora, vê-se logo que não é mineiro, a postura é outra, expõe-se de pé em frente ao cancelo. Parece aquele escritor inglês, aquele de barba hirsuta e óculos redondos. A fisionomia denota inteligência e interesses além dos mundanos. Dito e feito. Falou lindamente na tribuna com sotaque carioca e melhor, convenceu o relator a pedir vista.



Lytton Strachey e Virginia Woolf
From the book Lytton Strachey, His Mind and Art (1957) by Charles Richard Sanders., Domínio público,

Outra jovem advogada que carrega a bolsa para a tribuna pode ser do interior, alarmada com os índices de violência da capital. Mas, em pleno tribunal? Não creio. Esmerou-se mas alongou-se e repetiu-se numa sessão que contava com vinte e oito sustentações orais. Teve também defesa candente de intempestividade flagrante; é, no mínimo, muita coragem. Ou política pura, conforme as fotografias posteriores indicaram.

A relatora explicou-me com algum cuidado o motivo do improvimento do recurso, lá do alto da sua cátedra a uns vinte ou trinta metros de distância, mal lhe diviso o rosto. Aqui estamos de novo. Juízes e advogados levam a sério, ou deveriam levar um dos conselhos de Eduardo Couture (que a Editora Del Rey distribuía aos estudantes no início do curso de direito num papel azul sobre as carteiras), esquecer, tanto as vitórias quanto as derrotas. Assim, desapegados do passado, nos apresentamos a cada julgamento.

Assim como acudi o colega do Rio a vestir a beca, ele devolveu a gentileza, e em seguida ajudei outra jovem a passar a mão pela manga da beca imensa. Estava a mãozinha fria e suada. Pus a mão no seu ombro em apoio e saí.


Quando saí da sessão veio uma doublée de advogada e médica me pedir opinião sobre seu caso, história longa, processo de anos, recursos e tudo o que pode acontecer nesse tempo. Advogava em causa própria, péssimo negócio, eu lhe disse. Enquanto ouvia pensava na infelicidade de ser parte naquele processo penoso e longo. E pior, ainda, quando a parte e advogada acredita em uma teoria conspiratória qualquer. Aí, é buscar sofrimento certo.

No saguão encontrei a moça da mão gelada. Estava nervosíssima, me disse, foi minha primeira sustentação oral. Estava agora, feliz e aliviada.

Saí do tribunal pensando na proeminência das mulheres nesta sessão, a começar pela deusa da pintura na parede. Vale uma visita, para quem ainda não conhece o Palácio da Justiça Rodrigues Campos.


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