Raphael Silva Rodrigues
Advogado, Professor dos Cursos de Pós-Graduação em Direito Processual e em Direito do Trabalho da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais -PUC Minas.
A LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA AJUIZAR DEMANDAS VISANDO A
PRESERVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE DOS CIDADÃOS HIPOSSUFICIENTES
Segundo
as valiosas lições do Exmo. Procurador de Justiça Saulo de Tarso Paixão Maciel, “não se pode dar guarida a ato ilegal da
Administração sob o pretexto de se estar protegendo o interesse público. É o
ente público, no interesse da legalidade e do princípio moral, o principal
interessado em manter-se dentro dos parâmetros da lei, na proteção e defesa dos
direitos dos administrados. O escopo maior do Ente Público é servir e, não, ser
um fim em si mesmo, violando o ordenamento jurídico no seu interesse em
detrimento de direitos de terceiros. Cabe ao Poder Judiciário, no exercício de
seu Nobre Mister, proceder à efetivação de tais garantias”.
Um tema que muito nos intriga nos dias atuais se
refere à discussão em torno da falta de legitimidade do Ministério Público para
propor demanda concernente a direito individual que não envolve interesse
exclusivo de menor ou idoso, mais precisamente na área do direito à saúde.
O Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a
existência de repercussão geral quanto à legitimidade do Ministério Público
para propor Ação Civil Pública cujo objeto seja compelir ente federado a
fornecer medicamentos aos portadores de determinadas doenças (RE n.º
605.533/MG, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 30.04.2010).
Com efeito, ao fundamento de que o julgamento pela
Suprema Corte da matéria acima mencionada poderá refletir na decisão de
eventuais recursos que tenham por objeto a análise do tema sob o foco
infraconstitucional, restou sobrestado o recurso representativo de controvérsia
pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) – REsp n.º 1.110.552/CE, Rel. Min.
Eliana Calmon, DJ 23.09.2009 –, envolvendo a legitimidade do Parquet para pleitear medicamento necessário
ao tratamento de saúde, bem como litisconsórcio passivo necessário da União
Federal em demandas dessa natureza. Por questões didáticas, ressaltamos desde
já que não traremos maiores detalhes sobre este último ponto (litisconsórcio
passivo necessário da União) nesse breve arrazoado.
Antes de mais nada, entendemos que tal questão deve
ser analisada com base no princípio da legalidade estrita, ao qual se sujeita a
Administração Pública, e que tem seu primado fundamental nas normas constitucionais,
sendo assegurados o respeito à dignidade da pessoa humana e, essencialmente, o
direito à vida.
Cumpre sinalizarmos que a Constituição Federal erigiu como pilar supremo
de sua fundamentação, a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF/88), de
modo que o referido princípio insere-se dentro da categoria de direitos
imanentes ao ser humano, ou seja, mereceriam tutela estatal independentemente
de ser agasalhados pela ordem jurídica, porquanto revelam parcela indeclinável
da natureza humana.
Luís Roberto Barroso ensina:
Na esteira do Estado intervencionista, surgido do
primeiro pós-guerra, incorporam-se à parte dogmática das Constituições
modernas, ao lado dos direitos políticos e individuais, regras destinadas a
conformar a ordem econômica e social a determinados postulados da justiça
social e realização espiritual, levando em conta o indivíduo em sua dimensão
comunitária, para protegê-lo das desigualdades econômicas e elevar-lhe as
condições de vida em sentido mais amplo. (in “O Direito Constitucional e a Efetividade de suas
Normas”; 3ª ed.; Rio de Janeiro:
Renovar. 1996; p. 114).
Observa-se que a dignidade da pessoa humana, com seus
consectários lógicos, como o piso mínimo vital deve ser garantida a todos os
seus indivíduos, o que abarca a proteção à liberdade, à cidadania, ao bem estar
social, à saúde, à propriedade, à segurança, enfim, a uma pluralidade de
interesses cuja garantia está atrelada a preservação da dignidade da pessoa
humana.
Ou seja, a dignidade da pessoa humana revela que o Poder Público tem uma
obrigação natural positiva e negativa, sendo que deve assegurar o piso mínimo
vital a todos os cidadãos e conter práticas que possam afastá-lo da plenitude
de acesso a ele ante a premência de sua estrutura para a vida em sociedade e
para a preservação de todo o ordenamento jurídico e da força do direito como
elemento de regramento ético-social comportamental.
O artigo 6º da Constituição Federal
assegura como direito social, a Previdência Social, a assistência aos
desamparados, à saúde, entre outros direitos, como forma de concretizar as
prerrogativas contidas no artigo 5º da Carta Magna de 1988. E visando dar maior
efetividade ao direito à saúde, a Constituição estabelece em seu artigo 196,
que a saúde é um direito de todos e que é dever do Estado promovê-la.
Tais
dispositivos obrigam o Estado a disponibilizar para a população a execução de
todas as ações indispensáveis ao tratamento médico de enfermos, dentre as quais
se inclui expressamente a assistência terapêutica integral aos que dela necessitarem,
em todos os níveis de complexidade do sistema.
Ocorre
que no cotidiano forense temos verificado não ser rara a arguição pelos entes
federados da preliminar de ilegitimidade ativa ministerial para propor ações
judiciais visando preservar o direito ao fornecimento do medicamento necessário
à garantia da vida do cidadão carente. Nesse sentido, alguns magistrados já
proferiram decisões acolhendo preliminar de ilegitimidade ativa do Ministério
Público e, via de consequência, extinguiu o feito sem resolução do mérito, com
fulcro no artigo 267, VI, do CPC.
Como
visto, devido à controvérsia do tema, o mesmo foi submetido ao regime de
repercussão geral e dos recursos repetitivos de que tratam os artigos 543-B e C
do CPC.
Sempre
respeitando opiniões em contrário, consideramos restar clarividente a
legitimidade ativa do Ministério Público para ajuizar ação em defesa de
interesse individual homogêneo, em que indisponível a natureza do direito à
saúde (artigos 5º, caput c/c 127, caput, e 196, todos da CF/88).
Exatamente
por se tratar de interesse individual indisponível, a questão da legitimidade
do Ministério Público para compor o pólo ativo de demandas que buscam a
concessão de ordem judicial para que seja fornecido medicamento necessário ao
tratamento de saúde, deve ser analisada com base no seguinte dispositivo
constitucional:
Art. 127. O Ministério Público
é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses
sociais e individuais indisponíveis.
Até
porque, a generalidade e abstração dos direitos individuais homogêneos não
impedem a propositura de ação na tutela de pretensão meramente individual,
principalmente se considerarmos a natureza indisponível do direito à saúde.
Dentre
as atribuições funcionais constitucionalmente previstas ao órgão ministerial, destacam-se
aquelas contidas nos incisos II e III do artigo 129 da Carta Maior:
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I – [...]
I – [...]
II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de
relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as
medidas necessárias a sua garantia;
III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;
III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;
Ora, seria crível entender que Ministério Público
não tem legitimidade ativa para propor ação judicial cujo objeto seja compelir
o Poder Público a fornecer medicamentos àqueles que necessitam para preservação
da sua saúde e vida, mesmo havendo previsão constitucional (art. 129, II e III)
para tanto?! Inclusive, a própria Lei Orgânica do Ministério Público (art. 25,
IV, "a", da Lei n.º 8.625/93) confere ao órgão a função institucional
da defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis e
homogêneos.
Considerando o acima exposto, entendemos que o
Ministério Público possui legitimidade para ingressar com ação em nome de
terceiro, quando o objeto da demanda diz respeito à defesa de direitos
individuais indisponíveis, com fundamento nos artigos 1º, III, 5º, caput e §1º; 127, caput; 129, II e III; 196 a 198 da CF/88 (sem a exclusão de outros
dispositivos legais, tais como àqueles embasados na Lei n.º 7.347/85), mormente
quando hipossuficientes; condição essa que goza de presunção legal, haja vista
ser o representante ministerial detentor de fé pública.
* Publicado originalmente no Jornal da Associação Mineira
do Ministério Público - AMMP, Órgão Informativo da AMMP, v. 63, p. 14 - 15, 01
abr. 2014.
* Publicado com autorização do autor.
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