segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

A legitimidade do Ministério Público na preservação do direito à saúde dos hipossuficientes

 Raphael Silva Rodrigues
Advogado, Professor dos Cursos de Pós-Graduação em Direito Processual e em Direito do Trabalho da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais -PUC Minas.


A LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA AJUIZAR DEMANDAS VISANDO A PRESERVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE DOS CIDADÃOS HIPOSSUFICIENTES

Segundo as valiosas lições do Exmo. Procurador de Justiça Saulo de Tarso Paixão Maciel, não se pode dar guarida a ato ilegal da Administração sob o pretexto de se estar protegendo o interesse público. É o ente público, no interesse da legalidade e do princípio moral, o principal interessado em manter-se dentro dos parâmetros da lei, na proteção e defesa dos direitos dos administrados. O escopo maior do Ente Público é servir e, não, ser um fim em si mesmo, violando o ordenamento jurídico no seu interesse em detrimento de direitos de terceiros. Cabe ao Poder Judiciário, no exercício de seu Nobre Mister, proceder à efetivação de tais garantias”.

Um tema que muito nos intriga nos dias atuais se refere à discussão em torno da falta de legitimidade do Ministério Público para propor demanda concernente a direito individual que não envolve interesse exclusivo de menor ou idoso, mais precisamente na área do direito à saúde.

O Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a existência de repercussão geral quanto à legitimidade do Ministério Público para propor Ação Civil Pública cujo objeto seja compelir ente federado a fornecer medicamentos aos portadores de determinadas doenças (RE n.º 605.533/MG, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 30.04.2010).

Com efeito, ao fundamento de que o julgamento pela Suprema Corte da matéria acima mencionada poderá refletir na decisão de eventuais recursos que tenham por objeto a análise do tema sob o foco infraconstitucional, restou sobrestado o recurso representativo de controvérsia pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) – REsp n.º 1.110.552/CE, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ 23.09.2009 –, envolvendo a legitimidade do Parquet para pleitear medicamento necessário ao tratamento de saúde, bem como litisconsórcio passivo necessário da União Federal em demandas dessa natureza. Por questões didáticas, ressaltamos desde já que não traremos maiores detalhes sobre este último ponto (litisconsórcio passivo necessário da União) nesse breve arrazoado.

Antes de mais nada, entendemos que tal questão deve ser analisada com base no princípio da legalidade estrita, ao qual se sujeita a Administração Pública, e que tem seu primado fundamental nas normas constitucionais, sendo assegurados o respeito à dignidade da pessoa humana e, essencialmente, o direito à vida.

Cumpre sinalizarmos que a Constituição Federal erigiu como pilar supremo de sua fundamentação, a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF/88), de modo que o referido princípio insere-se dentro da categoria de direitos imanentes ao ser humano, ou seja, mereceriam tutela estatal independentemente de ser agasalhados pela ordem jurídica, porquanto revelam parcela indeclinável da natureza humana.
              
Luís Roberto Barroso ensina:

Na esteira do Estado intervencionista, surgido do primeiro pós-guerra, incorporam-se à parte dogmática das Constituições modernas, ao lado dos direitos políticos e individuais, regras destinadas a conformar a ordem econômica e social a determinados postulados da justiça social e realização espiritual, levando em conta o indivíduo em sua dimensão comunitária, para protegê-lo das desigualdades econômicas e elevar-lhe as condições de vida em sentido mais amplo. (in “O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas”; 3ª ed.; Rio de Janeiro: Renovar. 1996; p. 114).

Observa-se que a dignidade da pessoa humana, com seus consectários lógicos, como o piso mínimo vital deve ser garantida a todos os seus indivíduos, o que abarca a proteção à liberdade, à cidadania, ao bem estar social, à saúde, à propriedade, à segurança, enfim, a uma pluralidade de interesses cuja garantia está atrelada a preservação da dignidade da pessoa humana.  

Ou seja, a dignidade da pessoa humana revela que o Poder Público tem uma obrigação natural positiva e negativa, sendo que deve assegurar o piso mínimo vital a todos os cidadãos e conter práticas que possam afastá-lo da plenitude de acesso a ele ante a premência de sua estrutura para a vida em sociedade e para a preservação de todo o ordenamento jurídico e da força do direito como elemento de regramento ético-social comportamental.

O artigo 6º da Constituição Federal assegura como direito social, a Previdência Social, a assistência aos desamparados, à saúde, entre outros direitos, como forma de concretizar as prerrogativas contidas no artigo 5º da Carta Magna de 1988. E visando dar maior efetividade ao direito à saúde, a Constituição estabelece em seu artigo 196, que a saúde é um direito de todos e que é dever do Estado promovê-la.

Tais dispositivos obrigam o Estado a disponibilizar para a população a execução de todas as ações indispensáveis ao tratamento médico de enfermos, dentre as quais se inclui expressamente a assistência terapêutica integral aos que dela necessitarem, em todos os níveis de complexidade do sistema.

Ocorre que no cotidiano forense temos verificado não ser rara a arguição pelos entes federados da preliminar de ilegitimidade ativa ministerial para propor ações judiciais visando preservar o direito ao fornecimento do medicamento necessário à garantia da vida do cidadão carente. Nesse sentido, alguns magistrados já proferiram decisões acolhendo preliminar de ilegitimidade ativa do Ministério Público e, via de consequência, extinguiu o feito sem resolução do mérito, com fulcro no artigo 267, VI, do CPC.

Como visto, devido à controvérsia do tema, o mesmo foi submetido ao regime de repercussão geral e dos recursos repetitivos de que tratam os artigos 543-B e C do CPC.

Sempre respeitando opiniões em contrário, consideramos restar clarividente a legitimidade ativa do Ministério Público para ajuizar ação em defesa de interesse individual homogêneo, em que indisponível a natureza do direito à saúde (artigos 5º, caput c/c 127, caput, e 196, todos da CF/88).

Exatamente por se tratar de interesse individual indisponível, a questão da legitimidade do Ministério Público para compor o pólo ativo de demandas que buscam a concessão de ordem judicial para que seja fornecido medicamento necessário ao tratamento de saúde, deve ser analisada com base no seguinte dispositivo constitucional:

Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Até porque, a generalidade e abstração dos direitos individuais homogêneos não impedem a propositura de ação na tutela de pretensão meramente individual, principalmente se considerarmos a natureza indisponível do direito à saúde.

Dentre as atribuições funcionais constitucionalmente previstas ao órgão ministerial, destacam-se aquelas contidas nos incisos II e III do artigo 129 da Carta Maior:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I – [...]
II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;
III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

Ora, seria crível entender que Ministério Público não tem legitimidade ativa para propor ação judicial cujo objeto seja compelir o Poder Público a fornecer medicamentos àqueles que necessitam para preservação da sua saúde e vida, mesmo havendo previsão constitucional (art. 129, II e III) para tanto?! Inclusive, a própria Lei Orgânica do Ministério Público (art. 25, IV, "a", da Lei n.º 8.625/93) confere ao órgão a função institucional da defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos.

Considerando o acima exposto, entendemos que o Ministério Público possui legitimidade para ingressar com ação em nome de terceiro, quando o objeto da demanda diz respeito à defesa de direitos individuais indisponíveis, com fundamento nos artigos 1º, III, 5º, caput e §1º; 127, caput; 129, II e III; 196 a 198 da CF/88 (sem a exclusão de outros dispositivos legais, tais como àqueles embasados na Lei n.º 7.347/85), mormente quando hipossuficientes; condição essa que goza de presunção legal, haja vista ser o representante ministerial detentor de fé pública.

* Publicado originalmente no Jornal da Associação Mineira do Ministério Público - AMMP, Órgão Informativo da AMMP, v. 63, p. 14 - 15, 01 abr. 2014.

* Publicado com autorização do autor.

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