quarta-feira, 10 de maio de 2023

Uma palavra, dois sentidos

   


Anoiteceu. A luz do computador brilha no breu da sala, caro leitor. Estava aqui baixando documentos de ações e recursos, fazendo protocolos e ao mesmo tempo informando e enviando pelo WhatsApp aos clientes. Não é mesmo formidável no que se transformou a advocacia em tempo real?

A palavra tem origem no latim formidabilis, “o que causa medo, terrível”, e ainda, "pavoroso, diabólico, horrendo, assustador"; portanto, não há de ser boa coisa. Lembremos ainda de formicida.

Por outro lado, aceso o abajur e vislumbrada a luz no fim do túnel, há também o significado de “maravilhoso, excelente, fantástico”.

Deixarei como maravilhoso, excelente e fantástico não o multitarefa ambulante que se tornou o advogado, mas a decisão, aliás, a Decisão com “d” maiúsculo do Relator da apelação que sim, suspendeu a ação em grau de recurso até o julgamento da querela nullitatis de sentença de usucapião.

Para o leitor leigo que supõe grego clássico o escrito acima, a tradução: a história é mesmo longa e intrincada, valerá a pena narrar aqui? Creio que não, aborrecerá muito os leitores leigos.

Tentei uma sinopse, mas há tantos detalhes que descambam em questões de direito que desisti.

Sugiro que saltem para os últimos parágrafos ignorando o latinório jurídico, da mesma forma como li O Nome da Rosa, de Umberto Eco, saltando o latim de par em par.

Num esforço de reportagem para quem se atrever:

Em 1962 o pai comprou a prazo em nome dos filhos menores um lote. Não há contrato escrito, o famoso compromisso de compra e venda. Há apenas um recibo do sinal constando como adquirentes Fulano e irmãos menores; as notas promissórias resgatadas e um recibo de 1967. Fulano de tal falece em 2008. Na Prefeitura Fulano de Tal consta como titular do imóvel para fins de IPTU.

Em 2016 foi proposta ação de outorga de escritura por três dos filhos menores a esta altura já aposentados.

Na época da sentença em 2022 o juiz determinou a juntada de certidão atualizada. O documento apresentado pelos autores era uma certidão de transcrição da transmissão, o que demonstra a antiguidade da aquisição do bem pelo vendedor, muito antes da Lei de Registros Públicos, na verdade em 1935.

Com a atualização da certidão em 2022 descobriu-se que em 2019 foi averbada sentença de usucapião quanto ao lote objeto ação judicial em favor de terceiros.

Assim, no curso da ação de outorga já em fase de sentença houve a informação de fato que exigiu a propositura de ação declaratória de nulidade da sentença de usucapião; o que foi feito em dezembro de 2022, e até abril de 2023 não havia ainda, despacho inicial.

Veio a sentença da primeira ação, improcedente, exigindo matrícula quando a matrícula só foi instituída pela lei posterior ao contrato.

A Lei de Registros Públicos LEI Nº 6.015, DE 31 DE DEZEMBRO DE 1973 regulou o registro de imóveis na forma como conhecemos hoje; antes dela não havia a “matrícula”.

No Tribunal o Relator que leu o processo, a certidão e todas as averbações intimou os apelantes a manifestarem-se sobre a sentença de usucapião, fato que constitui óbice ao direito alegado.

De fato, representa óbice mas não afasta a necessidade da ação de outorga para obtenção do título de propriedade. A necessidade permanece.

Como a ação de usucapião foi proposta no curso da ação de outorga e ignorada até aquele momento, requereu-se a suspensão da ação de outorga até o trânsito em julgado da ação anulatória da sentença de usucapião.

A decisão, sucinta como o pedido, determinou a suspensão da ação de outorga. Oh, glória.

Observem este belo trecho: 

Nesse passo, ... os autores, ora apelantes, ajuizaram a ação anulatória de n°... Certo é que o julgamento de mérito daquela demanda reflete em eventual direito adjudicatório dos autores, ou ainda em prejudicialidade desta demanda. Desta feita, determino a SUSPENSÃO desta ação até o trânsito em julgado da ação anulatória de n°..., com fulcro no art. 313, V, “a” do CPC.

 Nesse passo, desta feita, determino a suspensão, quase um poema.

 Formidável, no segundo sentido.  

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