A
desatenção à circunstância
de que um
determinado vocábulo
pode ter mais
de uma acepção , principalmente
quando uma delas é mais
frequentemente usada em um certo sentido , mais ainda se técnica
a significação, pode levar a sérios
equívocos .
Veja-se
o vocábulo – arquivamento.
No direito processual penal , além do sentido comum de
colocar em arquivo (na expressão ,
por exemplo ,
“proceda-se ao arquivamento dos autos ”),
ou isso
juntamente com
a ideia correlata de encerrar um
caso ou
uma questão (assim ,
quando o art. 522 do CPP diz que , reconciliando-se as partes ,
serão os autos
arquivados), tem ele um significado técnico , de mais
uso , que
é o ato de abster-se o Ministério Público
de oferecer denúncia ,
como na expressão
“requerer o
arquivamento do inquérito ”.
Tal colocação
em arquivo ,
mediante despacho
do juiz , pode ser
mera consequência do encerramento do processo , sem mais de que cuidar .
Vê-se bem
isso da redação
do citado art. 522 do CPP, verbis:
“No caso
de reconciliação, depois de assinado pelo querelante o termo
de desistência , a queixa
será arquivada”.
Há casos ,
porém , em
que o vocábulo
é empregado para , ao mesmo tempo em que guarda fortemente
o sentido geral
de colocar em
arquivo por
motivo de extinção ,
salienta a origem desse ato .
É,
de fato , a mais
corrente e significativa
acepção do vocábulo .
Consiste na abstenção de denunciar
de parte do Ministério
Público , ou
seja, de não promover
o Ministério Público
a ação penal ,
o que importa definição
provisória do procedimento criminal, favorável ao indiciado.
Disso resulta a impossibilidade de seu cabimento depois de proposta
a ação penal ,
a não ser que a lei
tivesse permitido a retratação .
É o que
ocorria e ainda acontece no procedimento
especial dos crimes
de funcionários públicos
nos processos
de competência do juiz
singular .
Dispunha, porém ,
o revogado art. 559 do Código de Processo Penal que “Se a resposta ou defesa prévia
do acusado convencer da improcedência
da acusação , o relator
proporá ao Tribunal o arquivamento do processo ”.
É aí
que residia o perigo
de uma confusão danada ,
já que
depois de oferecida e recebida a denúncia não
haveria lugar para
o arquivamento requerido pelo Ministério
Público .
A quem
cabe decidir sobre
o pedido de arquivamento formulado pelo Procurador-Geral em casos de competência
originária de Tribunal
para o processo ?
Será ao relator ou
ao Tribunal ?
E respondia:
“Sem
dúvida que
o Tribunal , uma vez
que o relator
pode propor que
se arquive o processo e, nunca ,
determinar ele
próprio o arquivamento, conforme
se deduz do art. 559 do Código de Processo Penal ”[2].
O invocado e hoje
revogado art. 559 do Código de Processo Penal
cuidava de outra coisa :
da deliberação , de competência
do Tribunal , sobre
um julgamento
antecipado, o que , alias, pressupunha não ter havido pedido de arquivamento pelo Procurador-Geral, mas , sim , denúncia oferecida.
Prevalecem, nestas condições , no que
forem aplicáveis, as regras gerais . Dentre elas , a de ter sido reservado ao procurador
o poder de decisão
sobre o arquivamento da notitia
criminis, de acordo
com o art. 28 do CPP, no caso de discordar o juiz do pedido
de arquivamento formulado pelo promotor
de Justiça ou
procurador da República ,
no primeiro grau
jurisdicional. E o faz submetendo à apreciação deste o pedido de arquivamento de que
ele , juiz ,
discorde , sendo o controle ,
desse modo , interno .
O critério
tem a virtude de não
desrespeitar o nemo judex sine auctore, nem frontal nem indiretamente ,
pois que , como argutamente
observa o Prof. Hélio Tornaghi, “se o juiz pudesse compelir o Ministério Público
a agir , estaria, por
via oblíqua ,
violando o princípio ne procedat
judex ex officio”[4], o
que , ademais ,
“constituiria abalo dos mais graves à independência do Ministério
Público ”, conforme
palavras de Espínola Filho [5].
As considerações
acima , no sentido
de que o art. 28 do Código
de Processo de modo
algum estabeleceu um
controle jurisdicional da abstenção do Ministério
de denunciar , a atingir , como atingiria, o sistema
acusatório , foram por mim feitas tempos atrás , em tese de livre-docência [6],
e agora as reitero.[7]
Se a lição
do eminente jurista
de início citado estaria equivocada para a época em
que saiu sua
excelente obra ,
hoje a solução
ainda seria outra ,
ante a Lei
8.038/90, que agora
dispõe claramente , no art. 3º, inc. I, que compete ao relator :
“Determinar
o arquivamento do inquérito ou de peças
informativas, quando o requerer
o Ministério Público, ou submeter o requerimento à decisão
de tribunal competente ”.
Essa
Lei 8.038/90 dispõe sobre
o procedimento da ação penal
no Supremo Tribunal
Federal , podendo haver
complementação regimental .
2. Também nos Tribunais
de Justiça e nos
Tribunais Regionais
Federais aplica-se a citada Lei 8.038, de 28 maio
de 1990, sobre ações
penais originárias, por
força da Lei
n. 8.658, de 26 de maio de 1993.
3.
Objetar-se-ia que a citada Lei
8.038, logo após
dizer que
compete ao relator “determinar
o arquivamento do inquérito ou de peças
informativas, quando o requerer
o Ministério Público ”,
acrescenta: “ou submeter o requerimento
à decisão competente
do Tribunal ”.
Urge se esclareça a questão
de possível requerimento
que poderá o relator
submeter “à decisão competente
do Tribunal”.
De ordinário, porém, esse outro requerimento
não será um pedido do Ministério Público no sentido do arquivamento, ou seja, um ato significativo de abstenção de denunciar . O vocábulo designa, ali, coisa diferente , ou
seja, o requerimento alternativo que
seria de ser feito
se o Ministério Público ,
ao invés de manifestar-se pelo
arquivamento, promovesse a ação penal: o pedido
de dia , como
determina o art. 6º da lei citada, para que o Tribunal delibere sobre
o recebimento da denuncia, decisão, agora, de sua
competência.
Dir-se-á, porém ,
tomando-se o preceito legal
ao pé da letra ,
que deve haver
algum caso
em que
é o próprio pedido de arquivamento que
poderá escapar à apreciação do relator .
Cabe aqui, a esse respeito,
rememorar algumas considerações feitas tempos atrás .[12]
Tinham a ver
com a aplicação
do revogado art. 43, inc. II do CPP, que
mandava fosse rejeitada a denúncia quando “já
estiver extinta a punibilidade, pela prescrição
ou outra
causa ”.
Evidentemente, se a denúncia é inviável ,
exatamente por
não haver crime a punír, não
deve ser oferecida. Caso ,
pois , de pedido
de arquivamento.
Contudo, alguns
autores entenderam que ,
se tiver ocorrido a extinção da
punibilidade, o que cumpre ao promotor fazer não é pedir o
arquivamento, e sim que
o juiz declare extinto
o jus puniendi[13]. E, indeferido o pedido , não
restaria ao Ministério Público (a quem
cabe recurso , nos
termos do art. 581, IX) outra alternativa
que a de denunciar ,
sustentava o Prof. José Frederico Marques. “Não
cabe, como erroneamente já se pronunciou o Tribunal
de Justiça de São
Paulo, a remessa dos autos ao procurador ”[14], observou.
O Código
separou acusação de jurisdição ,
cabendo ao Ministério Público a resolução
de denunciar ou
não . É, este ,
um princípio
geral , e por
isso mesmo
só por
expressa disposição
legal poderá ser
excetuado . Se o promotor
oferecer a denúncia ,
poderá o juiz rejeitá-la, julgando extinta a punibilidade (como
preceituava o antigo art. 43).
Pode acontecer ,
assim , que
o relator entenda erroneamente que , se o pedido
de arquivamento se prende ao fato de estar extinta a
punibilidade, caberia uma decisão do Tribunal .
Se o Tribunal
acolher a remessa, apenas
aumentará sua carga
de trabalho .
4. Ocorre,
entretanto , que
o Supremo Tribunal
passou a julgar que ,
nesse caso de extinção
da punibilidade, e também no caso de pedido
de arquivamento por motivo
de atipicidade da conduta , a competência não
é do relator , mas
do próprio tribunal ,
que poderia
recusar o pedido
de arquivamento!
“Inquérito Policial .
Arquivamento. Requerimento do
Procurador-Geral da República . Pedido fundado
na alegação de atipicidade dos fatos .
Formação de coisa
julgada material . Não
atendimento compulsório . Necessidade de apreciação e decisão
pelo órgão
jurisdicional competente . Inquérito arquivado. Precedentes. O pedido de arquivamento de inquérito
policial , quando
não se baseia em falta de elementos
suficientes para
oferecimento de denúncia , mas na alegação de
atipicidade do fato , ou de extinção de punibilidade, não
é de atendimento compulsório , senão que deve ser objeto de decisão do órgão
judicial competente ,
dada a possibilidade de formação de coisa julgada material ” (Pet. 3743 / MG – Dje-092 DIVULG
21-05-2008 – PUBLIC 23-05-2008 – Rel. Min. Cezar Peluso).
O
art. 18 do Código de Processo ,
por exemplo ,
permite o desarquivamento pela própria autoridade policial diante de notícia de novas
provas . E é exatamente
em virtude
da possibilidade de novas provas que a própria decisão
de impronúncia do réu não faz coisa julgada. A jurisprudência do colendo Tribunal
está errada.
* Este trabalho foi escrito especialmente para a 6ª edição, v. 2, da obra coletiva Temas atuais do Ministério Público, organizada por Cristiano Chaves de Farias, Leonardo Barreto Moreira Alves e Nelson Rosenvald, a sair pela Editora Juspodivm.
[1] O júri
no direito brasileiro, São Paulo, 1955, p. 325.
[2] Elementos de direito processual penal. Rio,
1962, v. 3, p. 308.
[3] Idem, ibidem, v. l, p. 341.
[4] Hélio
Bastos Tornaghi, Comentários cit., Rio, 1956, v. 1, t. 2, p. 54.
[5] Eduardo
Espínola Filho, op. cit., p. 361.
[6] Cf.
Souza, José Barcelos de. Do Arquivamento,
Imprensa Oficial, Belo Horizonte, 1969, p.25-42, e Teoria e Prática da Ação Pena, Saraiva, São Paulo, 1980.
[7] Sobre a
matéria veja-se também o artigo “Reflexos do sistema inquisitivo em regras
processuais ligadas ao Ministério Público (Variações em torno do art. 28 do
CPP)”, in Temas atuais do Ministério Público, 3ª
edição, 2012, p. 721.
[8] Quanto à questão do cabimento da ação penal
privada subsidiária em caso de arquivamento do inquérito policial ou outras
peças de informações, veja-se, de minha autoria, o artigo Ação penal privada subsidiária (Código Penal, art. 103, § 3º): Fator
democrático de prevenção da impunidade, especialmente em caso de arquivamento ou
outra peça de informação, na obra coletiva Parte Geral do Código Penal Brasileiro, 30 anos depois, D’Placido
Editora, Belo Horizonte, 2014, p. 41. Org. Luciano Santos Lopes, Guilherme José
Ferreira da Silva e Luis Augusto Sanzo Brodt.
[9] Acórdão no DJ
de 5 mar. 1959, apenso, p. 1000.
[10] DJ de
5 dez. 1959, p. 16526.
[11] Quanto à questão do cabimento da ação penal
privada subsidiária em caso de arquivamento do inquérito policial ou outras
peças de informações, veja-se meu artigo Ação
penal privada subsidiária (Código Penal, art. 103, § 3º): Fator democrático de
prevenção da impunidade, especialmente em caso de arquivamento ou outra peça de
informação, na obra coletiva Parte Geral do Código Penal Brasileiro, 30
anos depois, D’Placido Editora, Belo Horizonte, 2014, p. 41. Org. Luciano
Santos Lopes, Guilherme José Ferreira da Silva e Luis Augusto Sanzo Brodt.
[12] José Barcelos de Souza. Teoria e Prática da Ação Penal, Saraiva,
São Paulo, 1979, n. 116, p.214-224.
[13] Cf. José Frederico Marques, Elementos, cit. v. 2, p. 170; José Pinto
Rennó, O Ministério Público em face do art. 28 do Código de Processo Penal,
Revista de Identificação e Ciências Conexas. Belo Horizonte, v. 23, 1956.
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