segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

A legitimidade do Ministério Público na preservação do direito à saúde dos hipossuficientes

 Raphael Silva Rodrigues
Advogado, Professor dos Cursos de Pós-Graduação em Direito Processual e em Direito do Trabalho da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais -PUC Minas.


A LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA AJUIZAR DEMANDAS VISANDO A PRESERVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE DOS CIDADÃOS HIPOSSUFICIENTES

Segundo as valiosas lições do Exmo. Procurador de Justiça Saulo de Tarso Paixão Maciel, não se pode dar guarida a ato ilegal da Administração sob o pretexto de se estar protegendo o interesse público. É o ente público, no interesse da legalidade e do princípio moral, o principal interessado em manter-se dentro dos parâmetros da lei, na proteção e defesa dos direitos dos administrados. O escopo maior do Ente Público é servir e, não, ser um fim em si mesmo, violando o ordenamento jurídico no seu interesse em detrimento de direitos de terceiros. Cabe ao Poder Judiciário, no exercício de seu Nobre Mister, proceder à efetivação de tais garantias”.

Um tema que muito nos intriga nos dias atuais se refere à discussão em torno da falta de legitimidade do Ministério Público para propor demanda concernente a direito individual que não envolve interesse exclusivo de menor ou idoso, mais precisamente na área do direito à saúde.

O Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a existência de repercussão geral quanto à legitimidade do Ministério Público para propor Ação Civil Pública cujo objeto seja compelir ente federado a fornecer medicamentos aos portadores de determinadas doenças (RE n.º 605.533/MG, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 30.04.2010).

Com efeito, ao fundamento de que o julgamento pela Suprema Corte da matéria acima mencionada poderá refletir na decisão de eventuais recursos que tenham por objeto a análise do tema sob o foco infraconstitucional, restou sobrestado o recurso representativo de controvérsia pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) – REsp n.º 1.110.552/CE, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ 23.09.2009 –, envolvendo a legitimidade do Parquet para pleitear medicamento necessário ao tratamento de saúde, bem como litisconsórcio passivo necessário da União Federal em demandas dessa natureza. Por questões didáticas, ressaltamos desde já que não traremos maiores detalhes sobre este último ponto (litisconsórcio passivo necessário da União) nesse breve arrazoado.

Antes de mais nada, entendemos que tal questão deve ser analisada com base no princípio da legalidade estrita, ao qual se sujeita a Administração Pública, e que tem seu primado fundamental nas normas constitucionais, sendo assegurados o respeito à dignidade da pessoa humana e, essencialmente, o direito à vida.

Cumpre sinalizarmos que a Constituição Federal erigiu como pilar supremo de sua fundamentação, a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF/88), de modo que o referido princípio insere-se dentro da categoria de direitos imanentes ao ser humano, ou seja, mereceriam tutela estatal independentemente de ser agasalhados pela ordem jurídica, porquanto revelam parcela indeclinável da natureza humana.
              
Luís Roberto Barroso ensina:

Na esteira do Estado intervencionista, surgido do primeiro pós-guerra, incorporam-se à parte dogmática das Constituições modernas, ao lado dos direitos políticos e individuais, regras destinadas a conformar a ordem econômica e social a determinados postulados da justiça social e realização espiritual, levando em conta o indivíduo em sua dimensão comunitária, para protegê-lo das desigualdades econômicas e elevar-lhe as condições de vida em sentido mais amplo. (in “O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas”; 3ª ed.; Rio de Janeiro: Renovar. 1996; p. 114).

Observa-se que a dignidade da pessoa humana, com seus consectários lógicos, como o piso mínimo vital deve ser garantida a todos os seus indivíduos, o que abarca a proteção à liberdade, à cidadania, ao bem estar social, à saúde, à propriedade, à segurança, enfim, a uma pluralidade de interesses cuja garantia está atrelada a preservação da dignidade da pessoa humana.  

Ou seja, a dignidade da pessoa humana revela que o Poder Público tem uma obrigação natural positiva e negativa, sendo que deve assegurar o piso mínimo vital a todos os cidadãos e conter práticas que possam afastá-lo da plenitude de acesso a ele ante a premência de sua estrutura para a vida em sociedade e para a preservação de todo o ordenamento jurídico e da força do direito como elemento de regramento ético-social comportamental.

O artigo 6º da Constituição Federal assegura como direito social, a Previdência Social, a assistência aos desamparados, à saúde, entre outros direitos, como forma de concretizar as prerrogativas contidas no artigo 5º da Carta Magna de 1988. E visando dar maior efetividade ao direito à saúde, a Constituição estabelece em seu artigo 196, que a saúde é um direito de todos e que é dever do Estado promovê-la.

Tais dispositivos obrigam o Estado a disponibilizar para a população a execução de todas as ações indispensáveis ao tratamento médico de enfermos, dentre as quais se inclui expressamente a assistência terapêutica integral aos que dela necessitarem, em todos os níveis de complexidade do sistema.

Ocorre que no cotidiano forense temos verificado não ser rara a arguição pelos entes federados da preliminar de ilegitimidade ativa ministerial para propor ações judiciais visando preservar o direito ao fornecimento do medicamento necessário à garantia da vida do cidadão carente. Nesse sentido, alguns magistrados já proferiram decisões acolhendo preliminar de ilegitimidade ativa do Ministério Público e, via de consequência, extinguiu o feito sem resolução do mérito, com fulcro no artigo 267, VI, do CPC.

Como visto, devido à controvérsia do tema, o mesmo foi submetido ao regime de repercussão geral e dos recursos repetitivos de que tratam os artigos 543-B e C do CPC.

Sempre respeitando opiniões em contrário, consideramos restar clarividente a legitimidade ativa do Ministério Público para ajuizar ação em defesa de interesse individual homogêneo, em que indisponível a natureza do direito à saúde (artigos 5º, caput c/c 127, caput, e 196, todos da CF/88).

Exatamente por se tratar de interesse individual indisponível, a questão da legitimidade do Ministério Público para compor o pólo ativo de demandas que buscam a concessão de ordem judicial para que seja fornecido medicamento necessário ao tratamento de saúde, deve ser analisada com base no seguinte dispositivo constitucional:

Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Até porque, a generalidade e abstração dos direitos individuais homogêneos não impedem a propositura de ação na tutela de pretensão meramente individual, principalmente se considerarmos a natureza indisponível do direito à saúde.

Dentre as atribuições funcionais constitucionalmente previstas ao órgão ministerial, destacam-se aquelas contidas nos incisos II e III do artigo 129 da Carta Maior:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I – [...]
II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;
III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

Ora, seria crível entender que Ministério Público não tem legitimidade ativa para propor ação judicial cujo objeto seja compelir o Poder Público a fornecer medicamentos àqueles que necessitam para preservação da sua saúde e vida, mesmo havendo previsão constitucional (art. 129, II e III) para tanto?! Inclusive, a própria Lei Orgânica do Ministério Público (art. 25, IV, "a", da Lei n.º 8.625/93) confere ao órgão a função institucional da defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos.

Considerando o acima exposto, entendemos que o Ministério Público possui legitimidade para ingressar com ação em nome de terceiro, quando o objeto da demanda diz respeito à defesa de direitos individuais indisponíveis, com fundamento nos artigos 1º, III, 5º, caput e §1º; 127, caput; 129, II e III; 196 a 198 da CF/88 (sem a exclusão de outros dispositivos legais, tais como àqueles embasados na Lei n.º 7.347/85), mormente quando hipossuficientes; condição essa que goza de presunção legal, haja vista ser o representante ministerial detentor de fé pública.

* Publicado originalmente no Jornal da Associação Mineira do Ministério Público - AMMP, Órgão Informativo da AMMP, v. 63, p. 14 - 15, 01 abr. 2014.

* Publicado com autorização do autor.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Counselling e advogados


Aprendemos uma palavra nova, counselling e investigando o termo verificamos, salvo melhor juízo, que se aplica a situações vividas na prática da advocacia. Não raras vezes vem o cliente com uma questão a ser destrinchada, separada em partes, revirada ao avesso. Não é só analisar mas apontar os caminhos que podem ser seguidos. Geralmente há mais de um.

O cliente está imerso numa questão que representa para ele apenas um problema, um grande problema causador de sofrimento. Que envolve questões complexas, obscuras e incognoscíveis, como geralmente são as questões de direito. 

Neste momento o advogado é convertido em profissional de escuta e muita vez a questão trazida não resultará numa ação judicial a ser imediatamente proposta. O advogado será ouvinte e usando seu conhecimento técnico ajudará o cliente a compreender a situação como um todo. As palavras- chave são ouvir e ajuda.

Em counselling diz-se ajudar a ajudar-se por meio desta relação estabelecida, como entende a  Associação Italiana de Counselling (O significado de Counselling, Paolo Quattrini).

Não de trata de conselho propriamente dito, pois, apontam-se direções mas a decisão é do cliente. 

Além da parte técnica da questão, que demanda o conhecimento jurídico do profissional, há geralmente mais pessoas envolvidas na questão trazida, em conflito declarado ou não. O que requisita do advogado habilidade para indicar caminhos adequados à melhor solução para o caso, que nem sempre é a via judicial.

É interessante observar e o texto referido aponta o fato da redução e esgarçamento dos núcleos familiares como condição do surgimento do counselling. Falta na sociedade moderna alguém próximo que acolha,  ouça e oriente, mas não determine de modo peremptório, faça isto ou aquilo.

Aos profissionais de escuta como psicólogos, psicanalistas, terapeutas vários, coachs, podemos acrescentar os advogados. Temos vivido na prática reiteradas vezes esta situação, o que nos levou à reflexão e investigação do tema.

Ampliando o counselling para as relações profissionais em curso, verificamos que é salutar e benéfico para o cliente de longo tempo (causas intermináveis e complexas) e o advogado, uma reunião de balanço. Fizemos uma hoje, a propósito de um laudo pericial após quatro anos de processo. Boa hora para sentar com os clientes e, além de apresentar o esperado laudo, fazer um apanhado  da questão trazida há anos atrás, o que foi proposto no contrato de prestação de serviços advocatícios, o trabalho que foi feito ao longo dos anos, informar os próximos eventos do processo judicial e, sim, vivenciar com os clientes a enormidade de tempo que dura um processo no Brasil.

É claro que nesse decurso de tempo há arestas a aparar, a demora é imputada sem dó aos advogados e as queixas e cobranças não se fazem esperar. Às vezes, tímida, às vezes, exigente, está demorando demais... De nossa parte, também achamos o mesmo. Daí o proveito desse conselhão com os clientes para, com papéis em número expressivo sobre a mesa, rememorarmos o ponto de partida há tantos anos, em que pé estamos e concluir, irmanados, que estamos no mesmo barco remando para que chegue a bom termo e porto.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

O idoso e sua construção biográfica - Artigo






RESUMO: Presente, neste texto, a interseção de duas fragilidades: velhice e doença. Porém, a despeito delas, é possível que a pessoa preserve a autonomia na sua construção biográfica.  O que se pretende discutir neste artigo são as possibilidades que se abrem àqueles que envelhecem com discernimento. 

SUMÁRIO: 1. Envelhecendo com discernimento e autonomia; 2. Decisões para a vida; 2.1. Cuidados paliativos; 2.2. Counselling como metodologia para aplicação dos cuidados paliativos; 3. Decisões para a morte; 4. O microssistema de proteção ao idoso; Referências.

Por muito tempo achei que ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba de mim.

Carlos Drummond de Andrade

1 ENVELHECENDO COM DISCERNIMENTO E AUTONOMIA

Parece um paradoxo: há um desejo de longevidade, mas não se está preparado para envelhecer. Talvez porque o envelhecimento seja acompanhado de perdas. O tempo passa e varre muita coisa: leva pessoas, muda lugares, desfaz sonhos. Por outro lado, acumulam-se experiências, aprende-se a sonhar novos sonhos e as vivências se tornam presentes através da memória.

Aliás, sobre o tempo, foi Santo Agostinho que, em suas Confissões, disse não ser possível afirmar que há três tempos distintos: passado, presente e futuro. O autor revela, ao contrário, uma interação entre esses três momentos, quais sejam o presente das coisas passadas que é a memória; o presente das coisas presentes que é a percepção ou a visão e o presente das coisas futuras que se configura na espera.

O idoso tem muito a lembrar. As experiências passadas se fazem presentes no seu dia a dia, ora como saudade, ora como simples recordação. As vivências do presente são percebidas com o olhar de quem já muito experimentou. Mas o que se pode esperar quando se chega à velhice?

Pode-se viver muito tempo com discernimento e autonomia. Não são poucos os exemplos de pessoas, no meio social ou na mídia que chegam a idades mais avançadas, como grandes empreendedores. Parece que, a cada dia, criam novas expectativas e projetos. Talvez seja esse o sonho mais acalentado daqueles que querem viver muito. Mas, ao lado desse sonho, existe o temor de uma perda gradual da consciência e da saúde e, consequentemente, da autonomia para decidir sobre seu próprio destino.

Foi Norberto Bobbio que, aos oitenta e quatro anos de idade, ao escrever De Senectute, comparou o envelhecer ao caminhar descendo uma escada. Um degrau pequeno a cada vez, mas, uma vez vencido, sabe-se que não voltará ao degrau mais alto. Ou seja, o envelhecer se mostra um processo irreversível.

            Nesse ponto, vamos nos concentrar na situação daquele idoso que, enfrentando problemas de saúde, conserva a possibilidade de ele próprio decidir quais as estratégias que pode lançar mão. Muitas vezes essa decisão pode estar em dissonância com a vontade da família e, não há dúvida de que é a vontade do idoso que deve prevalecer, vez que ainda, detentor de discernimento, o que, juridicamente, significa plena capacidade para a prática dos atos da vida civil.
           
2 DECISÕES PARA A VIDA

Ficaram para trás os tempos em que o médico determinava o tratamento a que devia submeter-se o paciente. Aliás, paciente é uma nomenclatura que retrata o papel passivo do doente frente ao papel ativo do profissional da saúde que, exercendo o poder daquele que detém o conhecimento científico, estava em posição de decidir o que era melhor para o outro. 

            A relação médico-paciente mudou de um modelo vertical, como descrito acima, para um modelo horizontal, em que o consentimento informado é a tônica da relação. Está-se, agora, lidando com duas fragilidades interligadas: a velhice e a doença. Mas, o idoso adoentado é resgatado pelo seu discernimento, que lhe afasta de um papel passivo para ser o autor de sua própria história.

            Ele decidirá, depois de devidamente informado sobre a maior ou menor gravidade de sua doença e sobre as possibilidades terapêuticas, o tratamento que melhor lhe convém ou mesmo, sobre a ausência de um tratamento.  

            Aparentemente essa é uma visão simplista, pois a realidade contempla uma variedade de situações que não se enquadram no sistema binário de pensamento próprio da sociedade e até mesmo do Direito. Não raro, a decisão final do paciente decorre de um processo de comunicação com as pessoas que estão ao seu redor, e que são relevantes para ele. Pode ser o cônjuge, o filho, o melhor amigo. Ou de considerações a respeito do trabalho e do lazer. Pode-se adiar um tratamento cirúrgico, por exemplo, para concluir um trabalho ou realizar uma viagem de férias.  

            Ainda em se tratando da interseção velhice – adoecimento há que se considerar os que preferem não saber acerca da sua doença, o que é garantido por documento internacional.[1] Contudo, essa escolha tem repercussões importantes do ponto de vista médico e jurídico. No primeiro caso, poderá a família assumir as decisões de natureza médica porquanto, a escolha de não saber sobre a gravidade da doença não implica, necessariamente, desistir de um acompanhamento médico e de tratamentos adequados ao restabelecimento da saúde. No aspecto jurídico, está-se diante de pessoa com possibilidade garantida de atuar no mundo jurídico e outra pessoa só poderá fazê-lo em seu lugar mediante outorga de poderes. Para a maioria das situações o mandato tácito poderá ser suficiente. Em outras, quando o procedimento médico exigir autorização expressa e escrita, lança-se mão da procuração para cuidados de saúde que, em um primeiro momento foi idealizada para situações de incapacidade de exercício, como forma alternativa à curatela, mas que pode ser uma maneira de viabilizar o exercício do direito de não saber.

            Conquanto exista um direito à busca da cura, nem sempre a cura é possível. Nesse caso, a presença de cuidados paliativos pode ser a solução.

2.1. Cuidados paliativos

            Por cuidado paliativo entende-se

[...] cuidado total e ativo dos pacientes cuja enfermidade não responde a um tratamento curativo. O controle da dor de outros sintomas e de problemas psicológicos, sociais e espirituais, adquire neles uma importância primordial. O objetivo dos cuidados paliativos é conseguir a máxima qualidade de vida possível para os pacientes e seus familiares [...] Os cuidados paliativos [...] afirmam a vida e contemplam a morte como um processo normal [...] nem aceleram nem propõem a morte [...] integram os aspectos psicológico e espiritual do cuidador [...] oferecem um sistema de suporte para ajudar os pacientes a viver até a morte tão ativamente quanto lhe seja possível [...] oferecem um sistema de suporte aos familiares para ajudá-los a enfrentar a enfermidade do paciente e seu próprio luto[2].
           
Em primeiro lugar, é importante frisar que, quando se fala em cuidados paliativos, não se está vinculando a técnica, necessariamente, a pessoas idosas, mas àquelas em qualquer idade, que estejam em fase de terminalidade da vida. Porém, o assunto é relevante para o tema ora abordado em razão do envelhecimento da população mundial, assim como do elevado número de idosos que estão a necessitar desses cuidados no final da vida, por serem acometidos de doenças crônicas ou degenerativas. Por exemplo:

En Estados Unidos, en 1920, más de la mitad de las personas que morían lo hacían antes de los veinte años y la esperanza de vida media era inferior a los cuarenta y nueve años. Hoy en día, la mayoría de las personas viven cerca de ochenta años y más del 80% de ellas mueren en instituciones – hospitales, residências, residências assistidas, etc. – llegando esta cifra al 95% en muchas ciudades. En 1920, el 80% moría en su casa. Aunque no tan acusada, la tendência en España es similar (BAYÉS, 2006, p.21).
           
Esta é uma realidade que se verifica em muitos países, o que justifica o reconhecimento de um verdadeiro direito aos cuidados paliativos, como o fez o Ministerio de Sanidad e Consumo (Espanha), ao criar um plano nacional de cuidados paliativos, adotando, entre os princípios gerais, o artigo 1º, cujo teor é:

Garantizar a los pacientes en fase terminal los cuidados paliativos, como un derecho legal del individuo, en cualquier lugar, circunstancia o situación, a través de las diferentes estructuras de la red sanitária, el apoyo psicológico y la ayuda social que precisen sin distinción de tipo de enfermedad ni ámbito de atención (BAYÉS, 2006, p. 21).
             
            Trata-se, como salientado na definição da OMS, de cuidado ativo, ou seja, ainda existe muito a ser feito, mesmo que o estado da ciência e da tecnologia não ofereça uma solução curativa. Equipes multidisciplinares apoiarão o paciente no enfrentamento de suas dores – o sofrimento físico, psicológico, espiritual e social.

            Na verdade, o cuidado físico sempre foi tido como o fundamental e, nessa seara, se destaca o profissional médico, que ministra tratamentos para minimizar os sintomas da doença, não sendo possível curá-la. Mas, o sofrimento extrapola em muito a questão física, daí, a necessidade de acompanhamento psicológico e espiritual, a partir dos valores assumidos como construção de vida boa de cada um.

Revelador dessa realidade mais complexa é o testemunho pungente de um médico – Dr. Archie Cochrane – considerado o pai da Medicina baseada em evidência:

La sala estaba llena, y como el moribundo estava chillando y no queria que despertara al resto de enfermos, le metí en mi habitación.
Le explore. Era obvio que tenía grandes cavitaciones bilaterales y efectación pleural. Pensé que esto último era lo que causaba el dolor y los alaridos. Carecía de morfina, y sólo tenia aspirina que no hacía ningún efecto. Me sentía impotente.
Yo casi no sabía hablar ruso, y nadie en la sala lo hablaba.
Finalmente, y de forma instintiva me senté en la cama y le recogí entre mis brazos; de forma casi instantánea dejó de chillar.
El paciente murió apaciblemente en mis brazos pocas horas después.
No fue la pleuresía la que originó los chillidos, sino la soledad.
Fue una maravillosa lección sobre la atención terminal. Me quedé avergonzado de mi error dignóstico y mantuve la historia en secreto (BAYÉS, 2006, p. 109/110). 
      
            Mas os cuidados paliativos não se restringem unicamente à pessoa do paciente, mas também àqueles que estão a sua volta e compartilham do sofrimento, ainda que em outra dimensão. Isso porque o estado emocional do cuidador e dos familiares, pode repercutir sobre o estado emocional do enfermo. Também porque o transtorno emocional que padece o cuidador, enquanto o paciente se aproxima da morte ou no momento do falecimento, pode adoecê-lo no seu processo de luto (BAYÉS, 2006, p.193).

            O cuidado com o cuidador é tão importante que a OMS, ao propor a definição de cuidados paliativos, incluiu os cuidadores entre os merecedores dessa atenção especial. Não é demais enfatizar que o sofrimento do luto que pode evoluir para uma enfermidade. 

2.2. Counselling como metodologia para aplicação dos cuidados paliativos

            Não se pode traduzir a palavra Counselling como sendo conselho, seja no sentido de aconselhamento, seja no sentido de órgão consultivo. Para não trair o verdadeiro significado do termo, de origem inglesa, preferível abster-se de sua tradução para a língua portuguesa.

O Counselling surgiu nos Estados Unidos, nos anos 50 do século XX, e na Europa, seu aparecimento se deu na década de 70 do século XX, particularmente na Inglaterra. Inicialmente tratava-se de um serviço de orientação como instrumento de suporte nos serviços sociais e no voluntariado. Foi com Carl Rogers, psicólogo estadunidense, que o termo assumiu os contornos atuais de colóquio centrado sobre o paciente.

            Trata-se de metodologia ou estratégia imprescindível para a comunicação de questões médicas entre o profissional da saúde, o paciente e seus familiares. As bases dessa metodologia de comunicação terapêutica são o conhecimento, as habilidades e as atitudes.

            Com efeito, na terminalidade da vida, o paciente, com relativa frequência, recebe más notícias sobre seu estado. Muitas vezes, a verdade dolorosa é substituída por mentiras piedosas. Outras vezes, no entanto, a verdade é comunicada de maneira direta e impessoal, sem a necessária atenção à condição de fragilidade emocional e psicológica do doente. A questão é como substituir mentiras piedosas por maneiras piedosas de comunicação da verdade.

            No âmbito dos cuidados paliativos, o Counselling tem como objetivo final a diminuição da experiência de sofrimento, facilitando o processo de adaptação dos pacientes e das famílias à situação em que se encontram. Desse objetivo final, derivam-se os seguintes objetivos mediatos: a) diminuir a morbidade psicológica subjacente às situações de ameaça e incerteza; b) incrementar os recursos internos e externos de todos os intervenientes na interação clínica; c) diminuir a vulnerabilidade da pessoa; d) cuidar do cuidador familiar; e e) cuidar do profissional. (ARRANZ; BARBERO; BARRETO Y BAYÉS, 2010, p. 35/36).

            Cuidados paliativos constituem um direito do paciente; portanto, a pessoa tem a legítima expectativa de utilização da melhor metodologia para aplicação desses cuidados.

3 DECISÕES PARA A MORTE

            A vida nos remete a autonomia. Aos melhores interesses das pessoas. À aptidão para manifestação da vontade. À construção não mais puramente biológica, mas também biográfica de cada um. À dignidade da pessoa humana que pode ser traduzida pela garantia de que todos se reconheçam livres e iguais em direitos. E, para a efetivação dessa dignidade, é necessário que os outros se conscientizem de que cada um tem seus próprios interesses críticos e cada pessoa é dotada de um padrão moral que lhe é próprio.

            É nesse contexto que entendemos ser legítimo ao paciente recusar-se a busca de tratamentos curativos ou paliativos. Aqui, cabe lembrar o filme Uma primavera com minha mãe, no original, Quelques heures de printemps, que relata a vida de uma mulher idosa, discernida e autônoma, acometida por um câncer no cérebro. Com direção de Stéphane Brizé, o filme aborda a delicada comunicação entre mãe e filho e o tabu sobre o direito de morrer.

            Ao descobrir que a doença evoluiu a tal ponto que, rapidamente, ela perderá o discernimento e a autonomia, a senhora recorre a uma clínica na Suíça que presta auxílio ao suicídio. Sua médica, tenta dissuadi-la de morrer, alegando a possibilidade de cuidados paliativos, dizendo, inclusive, que o controle da dor é possível e que pessoas podem viver bem, a despeito da proximidade da morte.

            A argumentação não foi aceita pela protagonista, escolhendo a morte como realização da sua pessoalidade. No caso do filme, a personagem não só recusou os cuidados paliativos, como planejou a sua morte, através do auxílio ao suicídio.

            Importante frisar que o fato de recusar um tratamento médico, seja ele curativo ou paliativo, nem sempre o resultado final será a morte imediata e planejada. Pode-se simplesmente deixar a vida seguir seu curso, ainda que a morte seja inevitável.

            Outra possibilidade seria a eutanásia, de legalidade ainda discutível no Brasil.[3] Nos dias atuais, a nomenclatura eutanásia vem sendo utilizada como ação médica que tem por finalidade abreviar a vida de pessoas. É a morte de pessoa – que se encontra em grave sofrimento decorrente de doença, sem perspectiva de melhora – produzida por médico, com o consentimento daquela. A eutanásia, propriamente dita, é a promoção do óbito. É a conduta, através da ação ou omissão do médico que emprega, ou omite, com o consentimento da pessoa, meio eficiente para produzir morte em paciente incurável e em estado de grave sofrimento, diferente do curso natural, abreviando-lhe a vida.

            Não se trata, aqui, de discorrer sobre o direito de morrer, mas sobre as opções na terminalidade da vida. Recusa de tratamento médico, suicídio assistido e eutanásia são possibilidades discursivas em um Estado Democrático de Direito.

            Talvez, permitir que o idoso determine o fim de sua pessoalidade seja fazer com que ele realize, ao final da sua existência, suas configurações enquanto autor de sua própria história. O ser humano apresenta outras dimensões que não somente a biológica, de forma que aceitar o critério da qualidade de vida significa estar a serviço não só da vida, mas também da pessoa. Oxalá as pessoas idosas possam enxergar nos cuidados paliativos uma forma digna de viver os últimos momentos.

4 O MICROSSISTEMA DE PROTEÇÃO AO IDOSO

            Em 2003 entrou em vigor a Lei n. 10.741, dispondo sobre o Estatuto do Idoso. Trata-se de verdadeiro microssistema jurídico porquanto congrega normas de natureza civil, penal, processual e administrativa.

            O Estatuto disciplina os direitos fundamentais do idoso, dando realce ao direito à saúde, no Capítulo IV, artigos 15 a 19. Porém, importante ressaltar o que dispõe o artigo 17:  “Ao idoso que esteja no domínio de suas faculdades mentais é assegurado o direito de optar pelo tratamento de saúde que lhe for reputado mais favorável.”

            Como já salientado, o discernimento garante à pessoa idosa a autonomia para a tomada de decisões a respeito de sua saúde e dos tratamentos que lhe forem convenientes.

            Na Medicina, as normas deontológicas – Resolução CFM n. 1931/2009, que aprova o Código de Ética Médica – conquanto não visem criar direito essencialmente novo ao paciente, disciplinam o exercício da profissão dispondo, especificamente sobre o tema, no item XXII, relativo à sua principiologia: “Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados.”

O parágrafo único do artigo 41, inserido no Capítulo V (Relação com pacientes e familiares), apresenta a seguinte diretriz para situações de terminalidade da vida: “Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal.”

            Contudo, o grande desafio é tornar efetivos os direitos legislativamente declarados, bem como as prescrições deontológicas. Há muito que ser feito no sentido de conscientizar e sensibilizar, tanto a comunidade leiga quanto os profissionais da saúde que, por detrás daquele corpo, existe alguém que pensa, sente, reivindica e, sobretudo, espera que seus interesses e decisões sejam considerados e respeitados.

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina; “Vida e obra” por José Américo Motta Pessanha. (Coleção Os pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1999.

ARRANZ, Pilar; BARBERO, Javier; BARRETO, Pilar; BAYÉS, Ramon. Intervención emocional en cuidados paliativos: modelos y protocolos. Barcelona: Ariel Ciencias Médicas, 2010.

ASCENSÃO, José de Oliveira. A terminalidade da vida IN TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (Coord.) O direito e o tempo – embates jurídicos e utopias contemporâneas: Estudos em Homenagem ao Professor Ricardo Pereira Lira. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2008, p. 155/178

BAYÉS, Ramón. Afrontando la vida, esperando la muerte. Madrid: Alianza, 2006.

BOBBIO, Norberto. De senectute - e altri scritti autobiografici. Turim: Einaudi, 1996.

LIMA, Taisa Maria Macena de; SÁ, Maria de Fátima Freire de. A família e o idoso entre dois extremos: abandono e superproteção. In: ASSIS, Zamira (coord). Família em perspectiva: uma abordagem multidisciplinar. Curitiba: Juruá, 2012. p. 225/236.

LIMA, Taisa Maria Macena de; SÁ, Maria de Fátima Freire de. A família no amparo da pessoa idosa. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de; MATOS, Ana Carolina Harmatiuk (Org.). Direito das Famílias por Juristas Brasileiras. Vol.1. São Paulo: Saraiva, 2013.  p. 839-850.

ROCHA, Silvio Luís Ferreira da. “Morrer com dignidade”. IN: LOTUFO, Renan, NANNI, Giovanni & MARTINS, Fernando Rodrigues (Coord.) Temas relevantes de direito civil contemporâneo. São Paulo: Atlas, 2012, p. 102/107

SÁ, Maria de Fátima Freire de; MOUREIRA, Diogo Luna. Direito de morrer: a realização da pessoalidade e a efetivação do direito de viver. In: EHRHARDT JUNIOR, Marcos; MOREIRA ALVES, Leonardo Barreto (coord). Leituras complementares de direito civil: direito das famílias. Salvador: Jus Podium, 2010.  p. 357/370.  

SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Manual de Biodireito. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2011.

SÁ; Maria de Fátima Freire de; MOUREIRA, Diogo Luna. Autonomia para morrer: eutanásia, suicídio assistido e diretivas antecipadas de vontade. Belo Horizonte: Del Rey, 2012.

TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Envelhecendo com autonomia. IN: FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coord). Direito civil: atualidades II - da autonomia privada nas situações jurídicas patrimoniais e existenciais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 75/88.

TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite. Procurador para cuidados de saúde do idoso. IN: PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de (Coord.). Cuidado & vulnerabilidade. São Paulo: Atlas, 2009. p. 1/16.




[1] Ver artigo 5º, c, da Declaração Universal Sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos.
[2] O enunciado é adotado pela Organização Mundial da Sáude. 
[3] Sobre o tema: Autonomia para morrer: eutanásia, suicídio assistido e diretivas antecipadas de vontade. SÁ, Maria de Fátima Freire de; MOUREIRA, Diogo Luna. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. 









Maria de Fátima Freire de Sá, Doutora em Direito e professora do Programa de Pós Graduação em Direito (mestrado e doutorado) da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.











Taisa Maria Macena de Lima, Doutora em Direito e Desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais 

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