quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Literatura no judiciário



As sentenças ditas literárias estão em alta. Parece que o povo gosta, acha mesmo lindo.

Destoando, adianto-me embora ninguém tenha perguntado: contra.

No mês passado circulou nas redes sentença de juiz do DF declarando indigno o pai à herança deixada pela filha deficiente.

Este escrito não trata do cabimento ou não de interpretação extensiva ao artigo 1.814 do Código Civil, que determina os excluídos da sucessão.

Diz a doutrina que não cabe, que a enumeração das hipóteses nos três incisos é taxativa, com exceção de dois doutrinadores bem modernos citados pela sentença.

Além do que, conforme também mencionou a sentença, o STJ já decidiu que apesar de o instituto da indignidade, não comportar interpretação extensiva, o desamparo à pessoa alienada mentalmente ou com grave enfermidade comprovados redunda em atentado à vida a evidenciar flagrante indignidade, o que leva à exclusão da sucessão testamentária” (STJ, Ac. 4ª Turma, REsp. 334.773/RJ, Rel. Min. César Asfor Rocha, j. 21/05/2002).

Como se sabe, Roma locuta causa finita.

A sentença ficou famosa não pela questão de direito, mas pelas citações literárias, discutíveis, simplesmente pelo fato da inadequação do lugar.

Sentença deve ter relatório, fundamentação (de direito), e julgamento. O mais, é desnecessário, e justamente por isso não deve constar de uma decisão.

Por quê? Por quê? - indagarão os adeptos de decisões melodramáticas.

Responde-se: em primeiro lugar porque é desnecessário. Ponto.

Segundo, porque desvirtua, chama o foco para a pessoa do juiz e seus interesses literários. Tudo tem hora e lugar, as revistas literárias das associações da classe dos juízes estão aí para isso mesmo, divulgar os pendores literários da classe, e como os há, diga-se.

O juiz não está no processo como a pessoa física de fulano de tal num convescote a declamar poemas, está no processo como o Estado. O Estado não declama poemas ou deita erudição.

Terceiro motivo: soa patético justamente pela inadequação, não casa, não orna, está sobrando; logo, alija-se.

A certa altura diz o vate-juiz: “certamente, o mesmo poeta Drummond diria ao réu: Sr. José de Alencar (...), a luz apagou!”

O poeta, cá para nós, certamente nada diria ao réu na sua humildade dos grandes. Nada diria ao réu.

Há mais pontas sobrando na decisão: o subjetivismo do julgador. Há nesta sentença reflexões sobre a vida, sobre o papel do pai; sobre a falta do pai; e não só, também dá conselhos ao réu, na verdade são exortações terminadas em exclamações.

Reflexão: exclamações, coisa abominável em petição, em sentença, em qualquer peça processual...

Assim, também, já é demais. Além de perder levou um carão, aliás, foi repreendido severamente.

Não cabe julgamento moral na sentença. Apenas o direito.

Processo 0716392-43.2021.8.07.0009

Nota: apesar do processo tratar-se de procedimento comum cível, classificado como público o acesso, o sistema de pesquisa do TJDF não retorna resultados; mas os três maiores veículos de notícias jurídicas têm o inteiro teor da sentença nas suas publicações gravada com os respectivos endereços eletrônicos dos sites.

No mesmo mês um juiz eleitoral baiano sobrepujou o fã de Drummond atacando de cordel. Nada como uma sentença em versos rimados. O TRE da Bahia divulgou o feito.

https://www.tre-ba.jus.br/comunicacao/noticias/2024/Setembro/em-araci-juiz-utiliza-cordel-em-sentenca-de-impugnacao-de-candidatura

Sem esquecer o autointitulado poeta-juiz de Quixadá...

Sem mais.

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