terça-feira, 25 de outubro de 2016

Padre é condenado a pagar danos morais por impedir interrupção de gravidez


Em decisão unânime, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) condenou um padre do interior de Goiás a pagar indenização de danos morais no valor de R$ 60 mil por haver impedido uma interrupção de gestação que tinha sido autorizada pela Justiça.

Em 2005, o padre Luiz Carlos Lodi da Cruz impetrou habeas corpus para impedir que uma mulher grávida levasse adiante, com auxílio médico, a interrupção da gravidez de feto diagnosticado com síndrome de Body Stalk – denominação dada a um conjunto de malformações que inviabilizam a vida fora do útero. No habeas corpus impetrado em favor do feto, o padre afirmou que os pais iriam praticar um homicídio.

Acompanhando o voto da relatora, ministra Nancy Andrighi, a Terceira Turma entendeu que o padre abusou do direito de ação e violou direitos da gestante e de seu marido, provocando-lhes sofrimento inútil.

Ao saber que o feto não sobreviveria ao parto, os pais, residentes na cidade de Morrinhos, a 128 quilômetros de Goiânia, haviam buscado – e conseguido – autorização judicial para interromper a gravidez.

Durante a internação hospitalar, a gestante, já tomando medicação para induzir o parto, foi surpreendida com a decisão do Tribunal de Justiça de Goiás, que atendeu ao pedido do padre e determinou a interrupção do procedimento.

A grávida, com dilatação já iniciada, voltou para casa. Nos oitos dias que se seguiram, assistida só pelo marido, ela agonizou até a hora do parto, quando retornou ao hospital. O feto morreu logo após o nascimento. O casal ajuizou uma ação por danos morais contra o padre, que preside a Associação Pró-Vida de Anápolis. Não obtendo sucesso na Justiça de Goiás, recorreu ao STJ.

Aterrorizante

Em seu voto, Nancy Andrighi classificou de “aterrorizante” a sequência de eventos sofridos pelo casal.

“Esse exaustivo trabalho de parto, com todas as dores que lhe são inerentes, dão o tom, em cores fortíssimas, do intenso dano moral suportado, tanto pela recorrente como pelo marido”, disse.

A ministra afirmou que o caso deve ser considerado à luz do entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, julgada em abril de 2012, quando se afastou a possiblidade de criminalização da interrupção de gestação de anencéfalos.

“É inegável que ambas as condições, anencefalia e síndrome de Body Stalk, redundam, segundo o conhecimento médico atual, na inviabilidade da vida extrauterina”, comparou a ministra.

Embora o julgamento da ADPF tenha sido posterior ao caso, a ministra assinalou que a orientação manifestada pelo STF não tem limites temporais, e já em 2005 era a mais consentânea com as normas constitucionais, inclusive pela reafirmação do caráter laico do Estado brasileiro e pelo reconhecimento da primazia da dignidade da gestante em relação aos direitos de feto sem viabilidade de vida extrauterina.
  
Ação temerária

A relatora avaliou que o padre agiu “temerariamente” quando pediu a suspensão do procedimento médico de interrupção da gravidez, que já estava em curso, e impôs aos pais, “notadamente à mãe”, sofrimento inócuo, “pois como se viu, os prognósticos de inviabilidade de vida extrauterina se confirmaram”.

De acordo com a ministra, o padre “buscou a tutela estatal para defender suas particulares ideias sobre a interrupção da gestação” e, com sua atitude, “agrediu os direitos inatos da mãe e do pai”, que contavam com a garantia legal de interromper a gestação.

Andrighi refutou ainda a ideia de que a responsabilidade não seria do padre, que apenas requereu o habeas corpus, mas, sim, do Estado, pois foi a Justiça que efetivamente proibiu a interrupção da gestação.

Segundo ela, “a busca do Poder Judiciário por uma tutela de urgência traz, para aquele que a maneja, o ônus da responsabilidade pelos danos que porventura a concessão do pleito venha a produzir, mormente quando ocorre hipótese de abuso de direito”.

A turma condenou o padre ao pagamento de R$ 60 mil como compensação por danos morais, valor a ser acrescido de correção monetária e juros de mora a partir do dia em que a recorrente deixou o hospital.

Fonte: Assessoria de Imprensa do STJ

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1467888

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Reconhecimento de paternidade por piedade é irrevogável, diz STJ


O reconhecimento espontâneo de paternidade, ainda que feito por piedade, é irrevogável, mesmo que haja eventual arrependimento posterior. Com base nesse entendimento, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) restabeleceu sentença que havia julgado improcedente o pedido de anulação de registro de paternidade proposto por um dos herdeiros de genitor falecido.
De forma unânime, os ministros entenderam que a existência de relação socioafetiva e a voluntariedade no reconhecimento são elementos suficientes para a comprovação do vínculo parental.
Em ação de anulação de testamento e negatória de paternidade, o autor narrou que seu pai, falecido, havia deixado declaração testamental de que ele e dois gêmeos eram seus filhos legítimos.
Todavia, o requerente afirmou que seu pai estava sexualmente impotente desde alguns anos antes do nascimento dos gêmeos, em virtude de cirurgia cerebral, e que teria escrito um bilhete no qual dizia que registrara os dois apenas por piedade.
Adoção à brasileira
O juiz de primeira instância negou o pedido de anulação por entender que o caso julgado se enquadrava na chamada “adoção à brasileira”, equivalente a um legítimo reconhecimento de filiação.
Em segundo grau, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) anulou a sentença e determinou a realização de perícia grafotécnica no bilhete atribuído ao falecido, além da verificação do vínculo biológico por meio de exame de DNA.
Os gêmeos e a mãe deles recorreram ao STJ com o argumento de que, como o falecido afirmou ter reconhecido a paternidade por piedade, não haveria mudança na situação de filiação caso a perícia grafotécnica e o exame de DNA comprovassem não ser mesmo ele o pai biológico.
Vínculo socioafetivo
Inicialmente, o ministro relator, Luis Felipe Salomão, esclareceu que a adoção conhecida como “à brasileira”, embora à margem do ordenamento jurídico, não configura negócio jurídico sujeito a livre distrato quando a ação criar vínculo socioafetivo entre o pai e o filho registrado.
Em relação ao caso analisado, Salomão salientou que o falecido fez o reconhecimento voluntário da paternidade, com posterior ratificação em testamento, sem que a questão biológica constituísse empecilho aos atos de registro. Para o relator, a situação não configura ofensa ao artigo 1.604 do Código Civil, que proíbe o pedido de anulação de registro de nascimento, salvo em caso de erro ou falsidade de registro. 
“Se a declaração realizada pelo autor, por ocasião do registro, foi inverdade no que concerne à origem genética, certamente não o foi no que toca ao desígnio de estabelecer com os infantes vínculos afetivos próprios do estado de filho, verdade social em si bastante à manutenção do registro e ao afastamento da alegação de falsidade ou erro”, afirmou o ministro.
Salomão também ressaltou que o curto período de convívio entre pai e filho – situação presente no caso – não é capaz de descaracterizar a filiação socioafetiva.
O ministro relator também lembrou o entendimento da Quarta Turma no sentido de que a contestação da paternidade diz respeito somente ao genitor e a seu filho, sendo permitido aos herdeiros apenas o prosseguimento da impugnação na hipótese de falecimento do pai, conforme estabelece o artigo 1.601 do Código Civil.
O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.


quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Diante de adoção inviável, STJ mantém poder familiar


A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve o poder familiar de um casal sobre seus filhos, mas determinou a continuidade do acolhimento dos menores em abrigo enquanto se tenta reconstruir o convívio familiar.
A decisão foi tomada pelo colegiado depois de concluir que a destituição do poder familiar, determinada pela Justiça de Mato Grosso do Sul em razão de abandono decorrente de miséria da família e alcoolismo materno, já não faz sentido agora que os filhos, adolescentes, se tornaram menos dependentes dos pais (eles estão com 13, 15 e 16 anos, e um já completou a maioridade), e também porque não paira sobre o pai nenhum questionamento quanto ao convívio com os filhos, salvo o fato de constantemente viajar a trabalho.
A relatora do caso, ministra Nancy Andrighi, assinalou que o pedido de destituição foi fundado exclusivamente no artigo 1.638, II, do Código Civil (abandono), “nada se referindo a castigos imoderados, práticas atentatórias à moral ou abuso de autoridade”.
Segundo ela, o mais importante a considerar nesses casos é o proveito da decisão judicial para a prole, mas, desde o pedido inicial de destituição familiar (2012), um possível proveito “escoou-se com o passar do tempo”.
Adoção improvável
De acordo com a magistrada, as baixas chances de adoção, seja pela idade, seja pela regra que determina a adoção conjunta de grupos de irmãos, torna ainda menos recomendável a destituição.
“Qual o objetivo, hoje, da destituição do poder familiar – hipótese no mínimo controversa –, se esse fato não redundará em proveito real para os menores, mas ao revés, soterrará as poucas possibilidades de um tardio reagrupamento familiar?”, questionou a ministra.
Ao acolher o recurso da Defensoria Pública, os ministros entenderam, por unanimidade, que é melhor manter o poder familiar para propiciar uma nova tentativa de restabelecer o vínculo entre pais e filhos.
Condições precárias
Nancy Andrighi destacou que são inegáveis os motivos que levaram à destituição do poder familiar, já que as crianças viviam em condições precárias, com carência alimentar, de higiene e alimentação, além da situação de abandono estar devidamente configurada. O pai, motorista, viajava constantemente, enquanto a mãe era viciada em álcool e entorpecentes.
Entretanto, segundo a magistrada, é preciso analisar o que é melhor para o futuro dos filhos, tendo em vista a inviabilidade da adoção.
Para a Terceira Turma, a decisão de destituir o poder familiar, atualmente, seria de pouco proveito para os menores. Na decisão, a ministra Nancy Andrighi determinou novas tentativas de retomada do convívio familiar pleno, “fixando-se, para esse reinício de aproximação, a continuidade do abrigamento dos menores, com o restabelecimento da possibilidade de retirada dos filhos, pelos pais, durante os finais de semana, se o pai estiver no lar, nesse período”. Fonte: Assessoria de Imprensa do STJ
O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Entre a tribuna, a pintura e o teto

Na sala de julgamento todas as cadeiras estavam tomadas. Sobrou uma em frente à entrada da tribuna. Logo descobri porque estava vaga, dela nada se vê além da tribuna, do teto, por sinal, belo (sobre esta sala escreveu Ricardo Arnaldo Malheiros Fiúza:

(...) É, sem dúvida, um dos salões públicos mais bonitos do Brasil. Maravilhoso é o impacto causado pela iluminação dos lustres de cristal da Bohemia sobre a tapeçaria vermelha, as cortinas douradas e as duas alas de cadeiras originais, trabalhadas pelas mãos hábeis do marceneiro Piancastelli, grande artesão do início do Século XX, em Belo Horizonte. (...)
Nesse salão, merecem ainda destaque: os bustos dos notáveis juristas Lafayette e Teixeira de Freitas; o velho relógio de parede Auschin Clock, que marca as horas desde Ouro Preto; um belo crucifixo, vindo de Mariana, conjugando em si o entalhe do marceneiro Mesquita, na bela cruz, e o cinzel de Fábio na pedra-sabão da imagem de Cristo.
No alto das paredes, cartelas de gesso artisticamente trabalhados trazem os nomes de grandes juristas brasileiros. Só dois não são mineiros: Clóvis e Ruy... (PALÁCIO DA JUSTIÇA: 100 ANOS DE ARQUITETURA E HISTÓRIA, Revista da Amagis). 


Foto: TJMG
E da gigantesca pintura parietal. Entre a tribuna, a pintura e o teto passei longas horas ouvindo a presidente e aguardando a vez de falar. Sem ver a desembargadora que dirigia a sessão era até possível imaginar que aquela voz vinha da moça da pintura, a encarnação da Justiça, que virou selo comemorativo em 2009.


Na parede principal domina o salão a bela figura da Justiça, pintada em 1920 por J. Bescaal. Mulher bonita, sem a venda nos olhos (para tudo ver...). Há “controvérsias” sobre qual a bela mulher que teria servido de modelo para o pintor.. A moldura em madeira maciça, encimada pelo brasão de Minas, causa impressão aos visitantes.(PALÁCIO DA JUSTIÇA: 100 ANOS DE ARQUITETURA E HISTÓRIA, Revista da Amagis).
            
Tudo que aconteceu naquela sessão já havia acontecido em tantas outras. Uma advogada nova que sustenta na tribuna e ouve a relatora dizer que o processo em julgamento é sobre outra matéria. Todos os presentes fazem cara de paisagem, como se nada estivesse acontecendo.

Um advogado de fora, vê-se logo que não é mineiro, a postura é outra, expõe-se de pé em frente ao cancelo. Parece aquele escritor inglês, aquele de barba hirsuta e óculos redondos. A fisionomia denota inteligência e interesses além dos mundanos. Dito e feito. Falou lindamente na tribuna com sotaque carioca e melhor, convenceu o relator a pedir vista.



Lytton Strachey e Virginia Woolf
From the book Lytton Strachey, His Mind and Art (1957) by Charles Richard Sanders., Domínio público,

Outra jovem advogada que carrega a bolsa para a tribuna pode ser do interior, alarmada com os índices de violência da capital. Mas, em pleno tribunal? Não creio. Esmerou-se mas alongou-se e repetiu-se numa sessão que contava com vinte e oito sustentações orais. Teve também defesa candente de intempestividade flagrante; é, no mínimo, muita coragem. Ou política pura, conforme as fotografias posteriores indicaram.

A relatora explicou-me com algum cuidado o motivo do improvimento do recurso, lá do alto da sua cátedra a uns vinte ou trinta metros de distância, mal lhe diviso o rosto. Aqui estamos de novo. Juízes e advogados levam a sério, ou deveriam levar um dos conselhos de Eduardo Couture (que a Editora Del Rey distribuía aos estudantes no início do curso de direito num papel azul sobre as carteiras), esquecer, tanto as vitórias quanto as derrotas. Assim, desapegados do passado, nos apresentamos a cada julgamento.

Assim como acudi o colega do Rio a vestir a beca, ele devolveu a gentileza, e em seguida ajudei outra jovem a passar a mão pela manga da beca imensa. Estava a mãozinha fria e suada. Pus a mão no seu ombro em apoio e saí.


Quando saí da sessão veio uma doublée de advogada e médica me pedir opinião sobre seu caso, história longa, processo de anos, recursos e tudo o que pode acontecer nesse tempo. Advogava em causa própria, péssimo negócio, eu lhe disse. Enquanto ouvia pensava na infelicidade de ser parte naquele processo penoso e longo. E pior, ainda, quando a parte e advogada acredita em uma teoria conspiratória qualquer. Aí, é buscar sofrimento certo.

No saguão encontrei a moça da mão gelada. Estava nervosíssima, me disse, foi minha primeira sustentação oral. Estava agora, feliz e aliviada.

Saí do tribunal pensando na proeminência das mulheres nesta sessão, a começar pela deusa da pintura na parede. Vale uma visita, para quem ainda não conhece o Palácio da Justiça Rodrigues Campos.


Ode à alegria

Ainda o tema. Desde as mais recentes indicações e posses deslustrosas para o mais alto cargo do judiciário brasileiro tenho evitado qualquer...